O MARIDO DE SUSANA
Por Otto Maria Carpeaux
O livro em questão tem algo de
escandaloso. Três vezes, nos momentos decisivos do enredo, lança-se à heroína
do romance a palavra..., bem, não é a palavra “prostituta” nem “meretriz” mas
sim expressão mais popular que nunca que se imprime em letras de forma.
Sobretudo não se diz isso a uma mulher tão pura que é ainda por cima heroína de
um livro bíblico, do qual aquele romance é a paródia irreverente. Nem se
falaria de obra tão escandalosa assim se não for escrita com tanta arte que
merece bem o apelido de “clássico”.
Infelizmente, “clássico” de uma
literatura desconhecida e por isso desconsiderada entre nós: da holandesa. Mas
com aquelas indicações acredito ter bastante preparado o terreno para poder
enfrentar a costumeira objeção contra “ilustres desconhecidos”. Um desses – até
pouco tempo Kafka também pertenceu ao grupo – é o flamengo Marnix Gijsen, poeta
que já cantou em moderníssimos versos o elogio de São Francisco de Assis e
depois o da sua cidade natal de Antuérpia. Seu nome romance chama-se: “O livro
de Joaquim da Babilonia, isto é, a relação sincera da sua vida e da vida de sua
célebre esposa, Susana”. Saiu em 1948; o editor, A.M. Stols, em Haia, já pode
anunciar a oitava edição, o que se deve, talvez, mais ao escândalo daquela
palavra três vezes repetidas do que ao incontestável valor da obra. Contudo,
nem isso garante a futura tradução para nossa língua- mas seria isso motivo
para não tomar conhecimento? A literatura holandesa não é mundialmente conhecida.
Mas não se encontram porventura no mesmo casa certos valores universais da
literatura brasileira? Em “Joaquim da Babilônia” também encontrei valores
universais: literário,s emocionais e até filosóficos; Marnix Gijsen tratou
deles com uma clareza luminosa, uma coragem, uma digamos grandeza d’alma que
são raras em toda a literatura contemporânea, de modo que o cronista, ciente da
estranha mensagem do marido da bíblica Susana, está com dever de transmiti-la. Mas
o que é, enfim, que nos tem de dizer esse Joaquim pré-histórico?
“Joaquim da Babilônia” é uma espécie de
paródia de relato bíblico: da história da casta Susana que foi espiada no banho
por dois velhos safados e, tendo resistido às propostas indecentes, denunciada
como adúltera. Quase teria sofrido o pior se o inspirado profeta Daniel não
tivesse revelado a verdade. Foi ele mesmo que escreveu mais tarde o livro
bíblico, como necrológio da mulher mais pura de todos os tempos. Mas quando o
marido de Susana o leu, achou muito incompleto. Daniel, espécie de mistura de
poeta lunático e esperto chefe de publicidade da virtude, nem achara necessário
mencionar o nome do marido – diz apenas “um judeu rico”, o que seria mera
tautologia, assim como “historiador erudito/’ ou “sacerdote piedoso”. Daí
Joaquim, embora já submerso nas trevas da história Do Oriente antigo, resolveu
escrever aquela “relação sincera”, do seu próprio ponto de vista de marido da
bela Susana, tão pura que só ele, o marido, a conhecia realmente. Sua relação
será diferente.
A beleza de Susana deslumbrou a todos.
Até aqueles dois velhos sábios não resistiram à tentação de desgraçar, se fosse
possível, virtude tão fascinante. Mas ele, assim como todo mundo, não sabiam.
Joaquim sabe melhor: Susana foi estéril. Não podia ter filhos. Não lhe ficou
outro caminho para perpetuar-se do que a gloria de ter renunciado ao amor e
enfim a tudo o que é humano. A sua virtude virou profissão e enfim instituição pública.
E contra essa verdade oficial, lavrou Joaquim seu protesto.
Joaquim viajara muito. Conheceu, como
comerciante viajante, todo o Oriente antigo, seus tesouros, perfumes, religiões
e odaliscas, o Egito, a Grécia e países desconhecidos do Norte; um Ulisses
oriental, não encontrando a paz de alma em parte alguma, nem na casa e cama de
Susana, bela com uma estátua, que o abraçou sem o amar. Mas era ciumenta. Não
tolerava outros deuses ao seu lado, nem sequer o Trabalho. Numa ocasião dessas,
quando a estéril lhe quis vedar essa mais pura das satisfações, Joaquim
cochichou pela primeira vez, meio brincando, aquela palavra fatídica: digamos “meretriz”.
Depois, o povo, acreditando na falsa acusação, repetiu aquela mesma palavra,
gritando. Enfim, quando Joaquim devia fazer o discurso de i9nauguração do
monumento, dedicando à virtude da sua mulher ainda em vida, curvou-se no fim
entre aplausos para ela, beijando-a, murmurando-lhe aos ouvidos: “Mulher
pública!”. Do livro não consta nada mais; explicação nenhuma. E “qu’est-ce que
cela prouve?” Aquela palavra três vezes repetida é mesmo a chave da obra
enigmática.
Na primeira vez, é apenas o protesto do
pagão oriental que escreveu o lvrio contra o culto puritano da virtude
abstrata. Pois, embopra Joaquim tenha sido “judeu rico”, conforme o profeta
Daniel, foi na verdade do espírito grego: o poeta flamengo Marnix Gijsen tampouco
é grego por nascimento, mas só um grego saberia escrever estilo tão
classicamente sóbrio, sazonando a descrição do Oriente antigo com anacronismos
tão deliciosamente irônicos que atrás da Babilônia do romance se levanta a
imagem do nosso mundo de hoje, com nossos comerciantes e sábios, mulheres
(públicas ou não) e velhos às mais das vezes safados e com o poder publicitário
da verdade oficial. No estilo reside o valor literário da obra. Mas seria
pouco, isso.
Na segunda vez, aquela palavra exprime
apenas a fúria do mundo vulgar e incompreensivo contra a Beleza: gostariam de
destruí-la porque a consideram como privilégio. Mas não sabem como ela faz
sofrer. Na cena da falsa acusação, que sofre parece Susana, sacrificada às falsas
convenções da Sociedade. Mas Joaquim sabe melhor. De maneira paradoxal defende
os dois velhos safados – “o desejo, num sexagenário, não é vergonha, mas sinal
de força” – visitando-os na prisão antes de eles serem executados; e, mais
paradoxalmente, são eles que procuram inspirar-lhe coragem. Quem sofre na
verdade é esse Ulisses oriental, Ulisses o “sofredor divino” – símbolo do homem
“tout court” na Babilônia da nossa civilização, indivíduo representativo,
sacrificado aos valores convencionais dos quais um dos mais fortes e mais ferrenhos
é a convenção do matrimônio. Aí reside o impulso emocional da obra, explicando
as palavras solenes da última página:
“Adeus, enfim, á leitor desconhecido;
Joaquim da Babilônia sauda-te. Por um instante ele surgiu do reino das sombras;
agora, volta a desaparecer. Mas teria aparecido em vão se ninguém reparasse a
gota de sangue do coração no seu caminho.” Os leitores de 7 edições repararam? “Joaquim
da Babilônia” é livro para homens maduros, saturados de dolorosa experiência de
vida. Livro temível que parece tratar apenas da esterilidade da Beleza, com
maiúscula – mas, dizia Milton, “queres colocar o matrimônio ou qualquer outra
instituição acima da exigência clara da misericórdia, este é ´fariseu.”.
Joaquim, porém, escreveu sua parábola, que pareceu só tratar do matrimônio,
para advertir contra a idolatria “da Virtude ou do Vício ou da Beleza ou da
Glória ou do Trabalho” e de todas as instituições antropófagas da nossa
civilização babilônica que nos fazem perder a alma. A virtude de Susana torna-se
“instituição pública” assim; e por isso Joaquim virou-se para ela, dizendo-lhe
aos ouvidos: “Mulher pública!”. A Bíblia, menos pudica nas expressões, fala
mesmo, no Apocalipse, da “Grande Meretriz da Babilônia”. E ainda vivemos na
Babilônia.
Da boca dos condenados recebeu, porém,
Joaquim a lição da coragem que se parece com o conselho de remoto patrício
holandês de quem escreveu essa história; dizia o Taciturno: “Point n’est besoin
d’espérer pour entreprendre, ni de réussir por persévérer”. Para transmitir-nos
essa mensagem, para sabermos que não estamos condenados se o quisermos assim,
surgiu do reino das sombras o pré-histórico Joaquim: um ilustre desconhecido
que saúda a nós, leitores desconhecidos, como homem e como irmão.
Texto originalmente publicado no Suplemento
de “A manhã” em 10/07/1949