quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Marnix Gijsen - por Otto Maria Carpeaux

O MARIDO DE SUSANA

Por Otto Maria Carpeaux

O livro em questão tem algo de escandaloso. Três vezes, nos momentos decisivos do enredo, lança-se à heroína do romance a palavra..., bem, não é a palavra “prostituta” nem “meretriz” mas sim expressão mais popular que nunca que se imprime em letras de forma. Sobretudo não se diz isso a uma mulher tão pura que é ainda por cima heroína de um livro bíblico, do qual aquele romance é a paródia irreverente. Nem se falaria de obra tão escandalosa assim se não for escrita com tanta arte que merece bem o apelido de “clássico”.
Infelizmente, “clássico” de uma literatura desconhecida e por isso desconsiderada entre nós: da holandesa. Mas com aquelas indicações acredito ter bastante preparado o terreno para poder enfrentar a costumeira objeção contra “ilustres desconhecidos”. Um desses – até pouco tempo Kafka também pertenceu ao grupo – é o flamengo Marnix Gijsen, poeta que já cantou em moderníssimos versos o elogio de São Francisco de Assis e depois o da sua cidade natal de Antuérpia. Seu nome romance chama-se: “O livro de Joaquim da Babilonia, isto é, a relação sincera da sua vida e da vida de sua célebre esposa, Susana”. Saiu em 1948; o editor, A.M. Stols, em Haia, já pode anunciar a oitava edição, o que se deve, talvez, mais ao escândalo daquela palavra três vezes repetidas do que ao incontestável valor da obra. Contudo, nem isso garante a futura tradução para nossa língua- mas seria isso motivo para não tomar conhecimento? A literatura holandesa não é mundialmente conhecida. Mas não se encontram porventura no mesmo casa certos valores universais da literatura brasileira? Em “Joaquim da Babilônia” também encontrei valores universais: literário,s emocionais e até filosóficos; Marnix Gijsen tratou deles com uma clareza luminosa, uma coragem, uma digamos grandeza d’alma que são raras em toda a literatura contemporânea, de modo que o cronista, ciente da estranha mensagem do marido da bíblica Susana, está com dever de transmiti-la. Mas o que é, enfim, que nos tem de dizer esse Joaquim pré-histórico?
“Joaquim da Babilônia” é uma espécie de paródia de relato bíblico: da história da casta Susana que foi espiada no banho por dois velhos safados e, tendo resistido às propostas indecentes, denunciada como adúltera. Quase teria sofrido o pior se o inspirado profeta Daniel não tivesse revelado a verdade. Foi ele mesmo que escreveu mais tarde o livro bíblico, como necrológio da mulher mais pura de todos os tempos. Mas quando o marido de Susana o leu, achou muito incompleto. Daniel, espécie de mistura de poeta lunático e esperto chefe de publicidade da virtude, nem achara necessário mencionar o nome do marido – diz apenas “um judeu rico”, o que seria mera tautologia, assim como “historiador erudito/’ ou “sacerdote piedoso”. Daí Joaquim, embora já submerso nas trevas da história Do Oriente antigo, resolveu escrever aquela “relação sincera”, do seu próprio ponto de vista de marido da bela Susana, tão pura que só ele, o marido, a conhecia realmente. Sua relação será diferente.
A beleza de Susana deslumbrou a todos. Até aqueles dois velhos sábios não resistiram à tentação de desgraçar, se fosse possível, virtude tão fascinante. Mas ele, assim como todo mundo, não sabiam. Joaquim sabe melhor: Susana foi estéril. Não podia ter filhos. Não lhe ficou outro caminho para perpetuar-se do que a gloria de ter renunciado ao amor e enfim a tudo o que é humano. A sua virtude virou profissão e enfim instituição pública. E contra essa verdade oficial, lavrou Joaquim seu protesto.
Joaquim viajara muito. Conheceu, como comerciante viajante, todo o Oriente antigo, seus tesouros, perfumes, religiões e odaliscas, o Egito, a Grécia e países desconhecidos do Norte; um Ulisses oriental, não encontrando a paz de alma em parte alguma, nem na casa e cama de Susana, bela com uma estátua, que o abraçou sem o amar. Mas era ciumenta. Não tolerava outros deuses ao seu lado, nem sequer o Trabalho. Numa ocasião dessas, quando a estéril lhe quis vedar essa mais pura das satisfações, Joaquim cochichou pela primeira vez, meio brincando, aquela palavra fatídica: digamos “meretriz”. Depois, o povo, acreditando na falsa acusação, repetiu aquela mesma palavra, gritando. Enfim, quando Joaquim devia fazer o discurso de i9nauguração do monumento, dedicando à virtude da sua mulher ainda em vida, curvou-se no fim entre aplausos para ela, beijando-a, murmurando-lhe aos ouvidos: “Mulher pública!”. Do livro não consta nada mais; explicação nenhuma. E “qu’est-ce que cela prouve?” Aquela palavra três vezes repetida é mesmo a chave da obra enigmática.
Na primeira vez, é apenas o protesto do pagão oriental que escreveu o lvrio contra o culto puritano da virtude abstrata. Pois, embopra Joaquim tenha sido “judeu rico”, conforme o profeta Daniel, foi na verdade do espírito grego: o poeta flamengo Marnix Gijsen tampouco é grego por nascimento, mas só um grego saberia escrever estilo tão classicamente sóbrio, sazonando a descrição do Oriente antigo com anacronismos tão deliciosamente irônicos que atrás da Babilônia do romance se levanta a imagem do nosso mundo de hoje, com nossos comerciantes e sábios, mulheres (públicas ou não) e velhos às mais das vezes safados e com o poder publicitário da verdade oficial. No estilo reside o valor literário da obra. Mas seria pouco, isso.
Na segunda vez, aquela palavra exprime apenas a fúria do mundo vulgar e incompreensivo contra a Beleza: gostariam de destruí-la porque a consideram como privilégio. Mas não sabem como ela faz sofrer. Na cena da falsa acusação, que sofre parece Susana, sacrificada às falsas convenções da Sociedade. Mas Joaquim sabe melhor. De maneira paradoxal defende os dois velhos safados – “o desejo, num sexagenário, não é vergonha, mas sinal de força” – visitando-os na prisão antes de eles serem executados; e, mais paradoxalmente, são eles que procuram inspirar-lhe coragem. Quem sofre na verdade é esse Ulisses oriental, Ulisses o “sofredor divino” – símbolo do homem “tout court” na Babilônia da nossa civilização, indivíduo representativo, sacrificado aos valores convencionais dos quais um dos mais fortes e mais ferrenhos é a convenção do matrimônio. Aí reside o impulso emocional da obra, explicando as palavras solenes da última página:
“Adeus, enfim, á leitor desconhecido; Joaquim da Babilônia sauda-te. Por um instante ele surgiu do reino das sombras; agora, volta a desaparecer. Mas teria aparecido em vão se ninguém reparasse a gota de sangue do coração no seu caminho.” Os leitores de 7 edições repararam? “Joaquim da Babilônia” é livro para homens maduros, saturados de dolorosa experiência de vida. Livro temível que parece tratar apenas da esterilidade da Beleza, com maiúscula – mas, dizia Milton, “queres colocar o matrimônio ou qualquer outra instituição acima da exigência clara da misericórdia, este é ´fariseu.”. Joaquim, porém, escreveu sua parábola, que pareceu só tratar do matrimônio, para advertir contra a idolatria “da Virtude ou do Vício ou da Beleza ou da Glória ou do Trabalho” e de todas as instituições antropófagas da nossa civilização babilônica que nos fazem perder a alma. A virtude de Susana torna-se “instituição pública” assim; e por isso Joaquim virou-se para ela, dizendo-lhe aos ouvidos: “Mulher pública!”. A Bíblia, menos pudica nas expressões, fala mesmo, no Apocalipse, da “Grande Meretriz da Babilônia”. E ainda vivemos na Babilônia.
Da boca dos condenados recebeu, porém, Joaquim a lição da coragem que se parece com o conselho de remoto patrício holandês de quem escreveu essa história; dizia o Taciturno: “Point n’est besoin d’espérer pour entreprendre, ni de réussir por persévérer”. Para transmitir-nos essa mensagem, para sabermos que não estamos condenados se o quisermos assim, surgiu do reino das sombras o pré-histórico Joaquim: um ilustre desconhecido que saúda a nós, leitores desconhecidos, como homem e como irmão.



Texto originalmente publicado no Suplemento de “A manhã” em 10/07/1949