segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Arthur van Schendel, por Otto Maria Carpeaux

UM PRÊMIO NOBEL PARA A HOLANDA
Por Otto Maria Carpeaux


Um grupo de admiradores do romancista holandês Arthur van Schendel pediu para ele o Prêmio Nobel de Literatura, distinção que nunca, ainda, foi conferida aos Países Baixos. Embora a Holanda, situada entre a França, a Inglaterra, e a Alemanha, seja  espécie de espelho da Europa, reunindo em seu seio as convicções cristãs mais firmes e um socialismo radical mais consciente das suas responsabilidades culturais, reunindo as qualidades da liberdade inglesa, do espírito crítico francês e da solidez científica alemã – nunca o mundo deu muito importância à literatura holandesa; dos tempos passados, do grande Barroco holandês do século XVII, dos Hooft, Bredero, Vondel, Dullsert, nem se fala; mas o mundo tampouco tomou conhecimento da poesia admirável da "geração de 1889", dos Perk, Kloos, Gorter, de que são os herdeiros, hoje, a poetisa Henriette Roland Holst e aquele romancista Arthur van Schendel.
Contudo, ele parece o escritor mais lido do seu país em nosso tempo: mas foi justamente esse fato que causou na própria Holanda forte oposição contra as reivindicações dos seus admiradores. Há quem achasse a obra de Van Schendel indigna da mais alta distinção literária porque se trata de literatura "brilhante" e no fundo evasionista, espelho de uma Europa "satisfeita" que já não existe. Com respeito às obras mais lidas de Van Schendel, as restrições parecem justificadas; traduzem as cartas de amor da religiosa portuguesa, deu biografia meio romanceadas de Shakespeare e Verlaine, escreveu romances pseudo-históricos que se passam na Itália da Renascença e na França  do "Ancien Régime". Sua suposta obra-prima dos anos antes de 1914, "Een zwerver verliefd" ("Um vagabundo enamorado"), é uma obra típica de um evasionista de alto nível estilístico, mais ou menos assim como um Rilke escreveu antes de tornar o poeta sério dos "Poemas Novos" e das "Elegias de Duíno". Este Van Schendel representa o preciosismo literário de uma época materialmente satisfeita e espiritualmente pouco inquieta. Ou então, para falar em termos holandeses: os  tradicionais escrúpulos religiosos dessa gente nórdica já estavam substituído pelo cosmopolitismo estético de elites requintadas; e a luta tensa contra o mar, que sempre ameaça destruir os campos holandeses bem cultivados, substituída pelo gozo das riquezas do mais fantástico dos Impérios coloniais. O resultado foi uma literatura admirável de alto nível, mas de que o mundo não precisava tomar conhecimento. Até se chegou ao ponto de negar a existência duma poesia holandesa: e os mais grosseiros chegaram a negar a existência duma alma holandesa - em vez de uma alma holandesa apenas possuiriam uma bolsa cheia de dinheiro.
Aí está uma injustiça evidente. Cada um dos povos europeus produziu valores literários especiais, não substituíveis por outros e nunca desistirei de chamar a atenção para essas "pequenas literaturas", por mais que isso desagrade aos comodistas, porque a  Europa  nossa mãe  não é a França nem a Inglaterra nem a Itália, mas sim o conjunto de todas aquelas nações, grandes e pequenas. Esplendor e miséria da Europa residem na sua diversidade de muitas línguas, muitas almas. A alma holandesa também existe. Mas é verdade que não se exprime, principalmente, de maneira literária. Sabe-se que os holandeses são muito laboriosos; mas o seu labor é duma espécie bastante peculiar. Consiste na conquista da própria terra... Durante muitos séculos os holandeses conquistaram, passo a passo, o seu país contra a resistência do elemento hostil, do mar. E com tenacidade incrível defenderam durante séculos o país contra os ataques sempre renovados da água. Essa luta sem fim formou o caráter holandês: homens vigilantes, silenciosos, conscientes de perigos transcendentais da parte dum inimigo implacável. Formou os calvinistas holandeses, sempre à procura de quaisquer pecados ocultos que lhes ameaçam a graça divina, a predestinação de habitar essa terra, a mais pobre da Europa, e de transformá-la na mais rica dos cinco continentes. Homens dessa índole não falam muito. Não se confessam nem se explicam. Não são poetas. Preferem a arte muda da pintura. Mas há uma poesia inconfundível na própria atmosfera holandesa, nas várias planícies úmidas com os inúmeros canais e os solitários moinhos de vento nos confins de horizontes brumosos, no olhar triste das vacas sedentárias, na uniformidade alegre das pequenas casas cor de tijolo, nos navios veleiros que, como espectros fantásticos, descansam silenciosamente nos portos das pequenas cidades caladas. Esperando –  a evasão para o Oriente, para os países de sonho e beleza.
Na Europa ainda não se resolveu o problema transcendental de conferir o sentido, e com isso beleza, à vida do trabalho. A tentação da fuga é grande. Mas, para variar um versos do nosso grande poeta "seria uma viagem, não seria uma solução", Arthur van Schendel também já sucumbira à tentação de evadir-se. Nascido na Batávia, na capital do Império fantástico dos holandeses, sonhava com a Itália da Renascença, com a Inglaterra elisabetana, com a França do "Ancien Régime", enquanto residindo em Haarlem, em Edam, pequenas cidades abafadas da pequena Holanda. Mas a partir de 1939  poder admirável de renovação de um artista - as suas obras, datadas de Florença, de Bellevue, de Sestri Levante, da "Europa, enfim, falam da Holanda; descobrem a alma holandesa.
"A fragata Joana Maria", romance escrito em 1930, foi uma segunda estreia, surpreendendo e comovendo a nação. E a história de um daqueles navios veleiros fantásticos, assim como os pintou Willem van de Velde, que ficam solitários e silenciosos no porto da pequena cidade calada, esperando angustiados a hora da fuga para os mares do Oriente. A fragata "Joana Maria" encarna todas as saudades do marujo Jacob Brouwer, que leva a vida toda para apoderar-se do navio dos seus sonhos. Mas quando a "Joana Maria" enfim é sua, revela-se como barca velha e miserável, boa só para fornecer oportunidade de deixar-se cair, numa hora de perturbação, do cordame e encontrar a morte nas águas turvas do porto, onde a fragata "Joana Maria" ficará descansando, solitária e silenciosa.
Arthur van Schendel compreendera afinal que não é preciso procurar nos sete mares do sonho a verdadeira significação da água que é o destino dos holandeses. É a mesma água misteriosa, a dos rios e canais da Holanda, que constitui o destino de Maarten Rossaart, personagem principal do romance "O homem da água", Maarten é um fascinado: com a tenacidade fanática do calvinista dedica-se à luta silenciosa contra o elemento que é, nas viagens solitárias do marinheiro de água doce, seu único companheiro. Sempre fica dirigindo seu navio água abaixo, em direção ao delta do Reno, através da planície brumosa e dos bosques úmidos que Ruysdael pintou: no fim da viagem espera-o o sol enorme, vermelho, levantando-se sobre o mar livre. Mas depois, sempre é a volta triste rio acima enquanto o sol esconde atrás de horizontes inacessíveis, assim como o terrível Deus dos calvinistas se esconde atrás das nuvens, deixando o homem na noite da sua vida mesquinha e desconsolada.
O símbolo torna-se mais "direto" no romance "Uma tragédia holandesa": Gerbrand Werendonk trabalha durante a vida inteira, arruinando sua existência e a dos seus, para restituir o dinheiro furtado delo pai. Essa gente, trabalhando heroicamente, não tem nada de heróica. Van Schendel, na sua segunda fase, é romancista de vidas triviais e até mesquinhas. Mas o quadro escuro, frio e incômodo em que Gerbrand Werendonk faz de noite as contas dos seus pequenos negócios, procurando verificar, angustiado, se a dívida já diminuiu, esse quarto escuro está, como num quadro claro-escuro de Rembrandt, secretamente iluminado por uma luz interna que se assemelha ao sol sobre os rios e canais de Maarten Rossaart, o sol do Deus terrível e longínquo que reina sobre essas almas assustadas e escurecidas.
A mesma luz interior ilumina os passeios noturnos de Engelbertus Kompaan, no "Homem rico", passeios solitários ao longo dos canais desertos que atravessam a cidade de Amsterdam e nos quais se refletem as casas abandonadas de outras épocas, outrora ricas e brilhantes e as figuras de mendigos e desesperados, candidatos ao suicídio noturno. Engelbertus é possuído pela ideia de desviar tal desgraça, de desperdiçar o seu dinheiro para acalmar a cólera divina. A sua mania filantrópica é  espécie de perversão diabólica do amor cristão. Ela, assim como Gerbrand, pretende expiar um crime que não cometeu. É um Don Quixote holandês, convertendo em dever social e mandamento divino a paixão do trabalho sem finalidade, o sonho recalcado que não é nada senão uma miragem no fundo da água suja de um canal deserto.
Arthur van Schendel, o do primeiro e o da segunda fase, sempre foi poeta. Como poeta, deu voz aos portos mudos de Van de Velde, aos campos mudos de Ruysdael, aos escuros quartos de Rembrandt. Povoou-os de Don Quixote que se acreditam santos, de santos que se acreditam pecadores, de pecadores que se salvam pelo trabalho silencioso, única salvação da consciência. É esta mesma a última profissão de fé de Arthur van Schendel, fé de um descrente mas ainda capaz de deslocar as montanhas da desgraça: pela vontade ferrenha de cumprir sempre, cada dia e a todo momento, o seu dever. E nada mais. Sabedoria triste e morosa; mas constitui, conforme acredita Van Schendel, a força invencível da alma holandesa e do Ocidente.
Esse resultado da "segunda fase" de Van Schendel corresponde à "segunda fase" da própria Europa. Enquanto Van Schendel, o da "primeira fase", parecia escritor universal e europeu, apenas foi uma evasionista de dimensões regionalistas; quando ele se voltava para sua Holanda regional, começou a dar forma aos problemas da Europa do seu e do nosso tempo, visto através de um temperamento holandês. As almas pobres e mesquinhas da sua gente são símbolos de humanidade sofredora. As pequenas cidades e os canais desertos da sua terra são purgatórios silenciosos. E a sabedoria triste do seu dogma, abandonado promete a salvação final, Arthur van Schendel, o mais típico dos holandeses, é o mais europeu dos escritores. Chama-se a defender, mesmo sem fé na colheita, o jardim ameaçado pelo mar; desperdiçar, mesmo sem amor, a vida no serviço dos naufragados; expiar, mesmo sem contrição, o crime que é nosso sem o termo cometido. Pode ser  não está certo – que então a tormenta da consciência se acalme. Também não será a felicidade. Mas é a fidelidade para consigo mesmo. E isto é alguma coisa; se não pé tudo, pelo menos é muito.



Artigo publicado originalmente no Diário de Pernambuco, em 5 de setembro de 1946.
Coincidentemente, Van Schendel morreu seis dias depois da publicação deste artigo, em 11 de setembro. Carpeaux não tinha como saber, já que o anúncio foi feito apenas 50 anos depois, mas Van Schendel foi indicado oficialmente ao Prêmio Nobel, em 1938.