segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Arthur van Schendel, por Otto Maria Carpeaux

UM PRÊMIO NOBEL PARA A HOLANDA
Por Otto Maria Carpeaux


Um grupo de admiradores do romancista holandês Arthur van Schendel pediu para ele o Prêmio Nobel de Literatura, distinção que nunca, ainda, foi conferida aos Países Baixos. Embora a Holanda, situada entre a França, a Inglaterra, e a Alemanha, seja  espécie de espelho da Europa, reunindo em seu seio as convicções cristãs mais firmes e um socialismo radical mais consciente das suas responsabilidades culturais, reunindo as qualidades da liberdade inglesa, do espírito crítico francês e da solidez científica alemã – nunca o mundo deu muito importância à literatura holandesa; dos tempos passados, do grande Barroco holandês do século XVII, dos Hooft, Bredero, Vondel, Dullsert, nem se fala; mas o mundo tampouco tomou conhecimento da poesia admirável da "geração de 1889", dos Perk, Kloos, Gorter, de que são os herdeiros, hoje, a poetisa Henriette Roland Holst e aquele romancista Arthur van Schendel.
Contudo, ele parece o escritor mais lido do seu país em nosso tempo: mas foi justamente esse fato que causou na própria Holanda forte oposição contra as reivindicações dos seus admiradores. Há quem achasse a obra de Van Schendel indigna da mais alta distinção literária porque se trata de literatura "brilhante" e no fundo evasionista, espelho de uma Europa "satisfeita" que já não existe. Com respeito às obras mais lidas de Van Schendel, as restrições parecem justificadas; traduzem as cartas de amor da religiosa portuguesa, deu biografia meio romanceadas de Shakespeare e Verlaine, escreveu romances pseudo-históricos que se passam na Itália da Renascença e na França  do "Ancien Régime". Sua suposta obra-prima dos anos antes de 1914, "Een zwerver verliefd" ("Um vagabundo enamorado"), é uma obra típica de um evasionista de alto nível estilístico, mais ou menos assim como um Rilke escreveu antes de tornar o poeta sério dos "Poemas Novos" e das "Elegias de Duíno". Este Van Schendel representa o preciosismo literário de uma época materialmente satisfeita e espiritualmente pouco inquieta. Ou então, para falar em termos holandeses: os  tradicionais escrúpulos religiosos dessa gente nórdica já estavam substituído pelo cosmopolitismo estético de elites requintadas; e a luta tensa contra o mar, que sempre ameaça destruir os campos holandeses bem cultivados, substituída pelo gozo das riquezas do mais fantástico dos Impérios coloniais. O resultado foi uma literatura admirável de alto nível, mas de que o mundo não precisava tomar conhecimento. Até se chegou ao ponto de negar a existência duma poesia holandesa: e os mais grosseiros chegaram a negar a existência duma alma holandesa - em vez de uma alma holandesa apenas possuiriam uma bolsa cheia de dinheiro.
Aí está uma injustiça evidente. Cada um dos povos europeus produziu valores literários especiais, não substituíveis por outros e nunca desistirei de chamar a atenção para essas "pequenas literaturas", por mais que isso desagrade aos comodistas, porque a  Europa  nossa mãe  não é a França nem a Inglaterra nem a Itália, mas sim o conjunto de todas aquelas nações, grandes e pequenas. Esplendor e miséria da Europa residem na sua diversidade de muitas línguas, muitas almas. A alma holandesa também existe. Mas é verdade que não se exprime, principalmente, de maneira literária. Sabe-se que os holandeses são muito laboriosos; mas o seu labor é duma espécie bastante peculiar. Consiste na conquista da própria terra... Durante muitos séculos os holandeses conquistaram, passo a passo, o seu país contra a resistência do elemento hostil, do mar. E com tenacidade incrível defenderam durante séculos o país contra os ataques sempre renovados da água. Essa luta sem fim formou o caráter holandês: homens vigilantes, silenciosos, conscientes de perigos transcendentais da parte dum inimigo implacável. Formou os calvinistas holandeses, sempre à procura de quaisquer pecados ocultos que lhes ameaçam a graça divina, a predestinação de habitar essa terra, a mais pobre da Europa, e de transformá-la na mais rica dos cinco continentes. Homens dessa índole não falam muito. Não se confessam nem se explicam. Não são poetas. Preferem a arte muda da pintura. Mas há uma poesia inconfundível na própria atmosfera holandesa, nas várias planícies úmidas com os inúmeros canais e os solitários moinhos de vento nos confins de horizontes brumosos, no olhar triste das vacas sedentárias, na uniformidade alegre das pequenas casas cor de tijolo, nos navios veleiros que, como espectros fantásticos, descansam silenciosamente nos portos das pequenas cidades caladas. Esperando –  a evasão para o Oriente, para os países de sonho e beleza.
Na Europa ainda não se resolveu o problema transcendental de conferir o sentido, e com isso beleza, à vida do trabalho. A tentação da fuga é grande. Mas, para variar um versos do nosso grande poeta "seria uma viagem, não seria uma solução", Arthur van Schendel também já sucumbira à tentação de evadir-se. Nascido na Batávia, na capital do Império fantástico dos holandeses, sonhava com a Itália da Renascença, com a Inglaterra elisabetana, com a França do "Ancien Régime", enquanto residindo em Haarlem, em Edam, pequenas cidades abafadas da pequena Holanda. Mas a partir de 1939  poder admirável de renovação de um artista - as suas obras, datadas de Florença, de Bellevue, de Sestri Levante, da "Europa, enfim, falam da Holanda; descobrem a alma holandesa.
"A fragata Joana Maria", romance escrito em 1930, foi uma segunda estreia, surpreendendo e comovendo a nação. E a história de um daqueles navios veleiros fantásticos, assim como os pintou Willem van de Velde, que ficam solitários e silenciosos no porto da pequena cidade calada, esperando angustiados a hora da fuga para os mares do Oriente. A fragata "Joana Maria" encarna todas as saudades do marujo Jacob Brouwer, que leva a vida toda para apoderar-se do navio dos seus sonhos. Mas quando a "Joana Maria" enfim é sua, revela-se como barca velha e miserável, boa só para fornecer oportunidade de deixar-se cair, numa hora de perturbação, do cordame e encontrar a morte nas águas turvas do porto, onde a fragata "Joana Maria" ficará descansando, solitária e silenciosa.
Arthur van Schendel compreendera afinal que não é preciso procurar nos sete mares do sonho a verdadeira significação da água que é o destino dos holandeses. É a mesma água misteriosa, a dos rios e canais da Holanda, que constitui o destino de Maarten Rossaart, personagem principal do romance "O homem da água", Maarten é um fascinado: com a tenacidade fanática do calvinista dedica-se à luta silenciosa contra o elemento que é, nas viagens solitárias do marinheiro de água doce, seu único companheiro. Sempre fica dirigindo seu navio água abaixo, em direção ao delta do Reno, através da planície brumosa e dos bosques úmidos que Ruysdael pintou: no fim da viagem espera-o o sol enorme, vermelho, levantando-se sobre o mar livre. Mas depois, sempre é a volta triste rio acima enquanto o sol esconde atrás de horizontes inacessíveis, assim como o terrível Deus dos calvinistas se esconde atrás das nuvens, deixando o homem na noite da sua vida mesquinha e desconsolada.
O símbolo torna-se mais "direto" no romance "Uma tragédia holandesa": Gerbrand Werendonk trabalha durante a vida inteira, arruinando sua existência e a dos seus, para restituir o dinheiro furtado delo pai. Essa gente, trabalhando heroicamente, não tem nada de heróica. Van Schendel, na sua segunda fase, é romancista de vidas triviais e até mesquinhas. Mas o quadro escuro, frio e incômodo em que Gerbrand Werendonk faz de noite as contas dos seus pequenos negócios, procurando verificar, angustiado, se a dívida já diminuiu, esse quarto escuro está, como num quadro claro-escuro de Rembrandt, secretamente iluminado por uma luz interna que se assemelha ao sol sobre os rios e canais de Maarten Rossaart, o sol do Deus terrível e longínquo que reina sobre essas almas assustadas e escurecidas.
A mesma luz interior ilumina os passeios noturnos de Engelbertus Kompaan, no "Homem rico", passeios solitários ao longo dos canais desertos que atravessam a cidade de Amsterdam e nos quais se refletem as casas abandonadas de outras épocas, outrora ricas e brilhantes e as figuras de mendigos e desesperados, candidatos ao suicídio noturno. Engelbertus é possuído pela ideia de desviar tal desgraça, de desperdiçar o seu dinheiro para acalmar a cólera divina. A sua mania filantrópica é  espécie de perversão diabólica do amor cristão. Ela, assim como Gerbrand, pretende expiar um crime que não cometeu. É um Don Quixote holandês, convertendo em dever social e mandamento divino a paixão do trabalho sem finalidade, o sonho recalcado que não é nada senão uma miragem no fundo da água suja de um canal deserto.
Arthur van Schendel, o do primeiro e o da segunda fase, sempre foi poeta. Como poeta, deu voz aos portos mudos de Van de Velde, aos campos mudos de Ruysdael, aos escuros quartos de Rembrandt. Povoou-os de Don Quixote que se acreditam santos, de santos que se acreditam pecadores, de pecadores que se salvam pelo trabalho silencioso, única salvação da consciência. É esta mesma a última profissão de fé de Arthur van Schendel, fé de um descrente mas ainda capaz de deslocar as montanhas da desgraça: pela vontade ferrenha de cumprir sempre, cada dia e a todo momento, o seu dever. E nada mais. Sabedoria triste e morosa; mas constitui, conforme acredita Van Schendel, a força invencível da alma holandesa e do Ocidente.
Esse resultado da "segunda fase" de Van Schendel corresponde à "segunda fase" da própria Europa. Enquanto Van Schendel, o da "primeira fase", parecia escritor universal e europeu, apenas foi uma evasionista de dimensões regionalistas; quando ele se voltava para sua Holanda regional, começou a dar forma aos problemas da Europa do seu e do nosso tempo, visto através de um temperamento holandês. As almas pobres e mesquinhas da sua gente são símbolos de humanidade sofredora. As pequenas cidades e os canais desertos da sua terra são purgatórios silenciosos. E a sabedoria triste do seu dogma, abandonado promete a salvação final, Arthur van Schendel, o mais típico dos holandeses, é o mais europeu dos escritores. Chama-se a defender, mesmo sem fé na colheita, o jardim ameaçado pelo mar; desperdiçar, mesmo sem amor, a vida no serviço dos naufragados; expiar, mesmo sem contrição, o crime que é nosso sem o termo cometido. Pode ser  não está certo – que então a tormenta da consciência se acalme. Também não será a felicidade. Mas é a fidelidade para consigo mesmo. E isto é alguma coisa; se não pé tudo, pelo menos é muito.



Artigo publicado originalmente no Diário de Pernambuco, em 5 de setembro de 1946.
Coincidentemente, Van Schendel morreu seis dias depois da publicação deste artigo, em 11 de setembro. Carpeaux não tinha como saber, já que o anúncio foi feito apenas 50 anos depois, mas Van Schendel foi indicado oficialmente ao Prêmio Nobel, em 1938.


terça-feira, 31 de maio de 2016

Van Doesburg, por Haroldo de Campos

Theo van Doesburg e a nova poesia

por Haroldo de Campos

[mantivemos a ortografia original de Haroldo]

van doesburg: o artista plástico; o arquiteto. pontos de referência obrigatórios para o estudo da evolução criativa de formas nas artes visuais. veja-se, p. ex., a "poetica dell'architettura neoplastica" de bruno zevi, onde há um retrato de corpo inteiro da intensa atividade factiva do artista holandês, inclusive de suas controvertidas relações com a bauhaus de gropius.

van doesburg: o poeta de vanguarda - item pouquíssimo conhecido graças à importante "antologia dos marginais " (anthologie der abseitigen") - "ultimatum que a lucidez de carola giedionwelcker lançou contra o "blacout da história" - foram respostos em circulação alguns poemas de van doesburg. palavras prévias da organizadora: "esta antologia preocupa-se com os poetas cujas obras são de difícil acesso, por não terem interessado aos grandes editores, aparecendo em tiragnes limitadas, de rápido esgotamento. o destino, que lhes recusou um mais amplo círculo de leitores e os relegou a um segundo plano, não nos parece compatível com sua dimensão artística, sua personalidade intensa e sua importância na evolução histórica da poesia." (en passant: manifestação histórica nacional de um análogo processo de escamoteamento da obra de arte - a não reedição das poesias e das invenções em prosa de oswald de andrade, para não falar de inéditos).

van doesburg pertence à categoria dos pintores-poetas (kurt schwitters, kandinsky, klee, raoul hausmann, hans arp), identificável principalmente na moderna literatura de língua alemã, cuja obra, embora, em certos casos, circunstancial e "bissexta", está mais próxima do real sentido criativo de uma nova poesia, por suas características de desnudamento formal, do que a da maioria dos profissionais do verso, peritos-provadores do almbique lírico ou sombrios oficiantes de cinzentas metafísicas, que, malgrado o lance de dados mallarmáico (1897), continuaram e continuam aguando a tradução poética viva.

mas não é só. van doesburg foi dos que mais conscientemente, entre esses experimentalistas, colocou o problema de uma nova forma poética. não ficou nas soluções do tipo kandinsky/arp: uma espécie de abstracionismo temático; transposição, em termos de conceitos verbais, dos efeitos visuais da arte não figurativa, o que incluía um princípio de organização ainda discursivo, não muito diferente da escrita automática. van doesburg não se deteve apenas numa revolução temática, conteudística, que só até certo ponto e táticamente corresponderia a uma nova visão do poema. enfrentou o poema como um problema de relações e procurou resolvê-lo com seu material específico - a palavra - sem apelo a qualquer retórica, ainda que de conteúdos abstratos. seu livro "soldatenverzen" (1976 - "versos de soldado") compõe-se de uma série de poemas com duas, três ou quatro palavras apenas, o "exhibit" que apresentamos (voorbijtrekken de troep" - "tropa em desfile") evidencia este sentido de estrutura rigorosamente econômica, sem intromissão de qualquer resíduo discursivo ou arabesco metafórico, procurando criar, com elementos exclusivamente gráfico-sonoros, uma onomatopeia-ideograma de uma tropa em movimento. não nos iluda o vocabulário militar, próprio da época (1ª guerra mundial - em 1014 van doesburg fora convocado), contradiço também em caligramas de apollinaire ou nas "parole in libertà" de marinetti e sei grupo. no "tropa em desfile" não há nenhuma intenção de arranjo pitográfico exterior, como, p. ex., na metralhadora e na bota do "2e. canonnier conducteur", poema publicado por apollinaire mais ou menos à mesma época (1915); tampouco a figuração por assim dizer "imitativa" da velocidade que ocorre no "après la marne, joffre visite le front en auto" (1919), de marinetti, caos verbal "parolibrista", frenético malabarismo tipográfico desprovido de qualquer vontade construtiva. no poema de van doesburg a noção de organização rígida está sempre presente: pode-se dizer que, descartada a temática circunstancial, já há uma antevisão de um rpoblema concreto de compisição. a invasão do bloco verbal pelo branco da página é calculada de maneira a criar um movimento intrínseco, não "figurado", mas resultante do jogo de fatores de proximidade e semelhança. os cortes em "ransel" e "ruischen", isolando e repetindo no campo visual elementos idênticos de modo a produzir uma espécie de sístole-diástole rítmica (abrir e fechar de espaço); a minimização de estrutura de "ruischen" a "r", resolvendo como um desfecho-silêncio (não um "finale enfático") a andadura da peça, o que lembra certas estruturas análogas da música moderna (webern, p.ex.); a exploração consciente das semelhanças de letras (h/n, e/c), impondo um sentido de ordem às desarticulações do segmento ruischen e contribuindo para a dinâmica desejada; todos esses recursos (para não falar no uso até certo ponto interessante, embora discutível, pela margem de arbitrariedade, de negritos e grifos, intercâmbios de caixa alta e baixa, com função tônicas-focos para uma leitura-partitura oral-visual) dão um nível de interesse extremamente atual às pesquisas de theo van doesburg, que parece ter trazido para sua poesia a disciplina neoplástica do movimento "de stijl" - dique à anarquia dadaísta;futurista; convite a uma poesia nova e construtiva.
outras obras de van doesbrug:

poesia: "volle maan" ("lua cheia") - 1918; "se stem uit de diepte" ("a voz da profundidade") - 1915; "xbeelden" - 1917-1920; "klankbeelden" - 1920.
carola giedion welcker sobre a prosa de van doesburg: "ele procura evocar as palavras elementares e constantes e neutralizar a atmosfera trágica e sentimental. pretende construir uma prosa universal, não-anedótica e pura, em consonância com seus princípios em pintura e em arquitetura". infelizmente, não são reproduzidos enxertos desses invenções em prosa - publicadas na revista "de stijl" e portanto de difícil acesso - na "antologia dos marginais".


Artigo originalmente publicado no suplemento dominical do Jornal do Brasil de 7 de julho de 1957.


Complementamos esse artigo de Haroldo com a tradução de "Volle maan", de Theo van Doesburg, feita por Mário Faustino A tradução de Faustino também foi publicada no suplemento dominical do Jornal do Brasil, mas a data é ilegível.  


LUA CHEIA

Fujo da cidade.
Estico a vereda.
Procuro os caminhos campestres.
Procuro a lua.
Procuro-me a mim mesmo.
Talvez me encontre.

Lá pela esquina.
Lá o caminho.
Lá está o feno em montes
Lá com minha alma
ao mesmo tempo
quero correr sob o sol da lua.

É uma casa?
Era uma casa
agora é carbúnculo
é uma granja?
era uma granja
Agora é claro e escuro
Será por acaso Feno?
Será por acaso Feno?
Feno foi pela manhã,
agora esguicha a terra
em ouro vivo
e o feno é empréstimo.
E aquilo é água?
Era água uma vez
Agora é madrepérola
Aquilo é um barco?
Foi um barco,
agora ergue-se um escuro pássaro
pela metade fora d’água.
Isto é a minha mão?
Foi uma mão
Agora é uma estranha
Planta branca.

II

A lua está no ar!
A auriargêntea lua.
Um copo é universo
cheio de um líquido prateado
Minha boca jaz à imagem.
Bebo. Bebo luz
O ar é luz.
Respiro luz.
                    Lá bate asagigante.
                    sobre minha cabeça bandonuvem
Quem antes do ouvir
e não do ver nasce?
Qual fogo da luz
não veio a meu semblante?
                   Luz nasce em minhalma
Mal ouvia ainda o pato,
seu grassitar no charco.
Não sabia nem quem nem onde eu era.
Meu peito lento e rápido se abria
Então morri, mas logo outra vez vivia.

  

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Marnix Gijsen - por Otto Maria Carpeaux

O MARIDO DE SUSANA

Por Otto Maria Carpeaux

O livro em questão tem algo de escandaloso. Três vezes, nos momentos decisivos do enredo, lança-se à heroína do romance a palavra..., bem, não é a palavra “prostituta” nem “meretriz” mas sim expressão mais popular que nunca que se imprime em letras de forma. Sobretudo não se diz isso a uma mulher tão pura que é ainda por cima heroína de um livro bíblico, do qual aquele romance é a paródia irreverente. Nem se falaria de obra tão escandalosa assim se não for escrita com tanta arte que merece bem o apelido de “clássico”.
Infelizmente, “clássico” de uma literatura desconhecida e por isso desconsiderada entre nós: da holandesa. Mas com aquelas indicações acredito ter bastante preparado o terreno para poder enfrentar a costumeira objeção contra “ilustres desconhecidos”. Um desses – até pouco tempo Kafka também pertenceu ao grupo – é o flamengo Marnix Gijsen, poeta que já cantou em moderníssimos versos o elogio de São Francisco de Assis e depois o da sua cidade natal de Antuérpia. Seu nome romance chama-se: “O livro de Joaquim da Babilonia, isto é, a relação sincera da sua vida e da vida de sua célebre esposa, Susana”. Saiu em 1948; o editor, A.M. Stols, em Haia, já pode anunciar a oitava edição, o que se deve, talvez, mais ao escândalo daquela palavra três vezes repetidas do que ao incontestável valor da obra. Contudo, nem isso garante a futura tradução para nossa língua- mas seria isso motivo para não tomar conhecimento? A literatura holandesa não é mundialmente conhecida. Mas não se encontram porventura no mesmo casa certos valores universais da literatura brasileira? Em “Joaquim da Babilônia” também encontrei valores universais: literário,s emocionais e até filosóficos; Marnix Gijsen tratou deles com uma clareza luminosa, uma coragem, uma digamos grandeza d’alma que são raras em toda a literatura contemporânea, de modo que o cronista, ciente da estranha mensagem do marido da bíblica Susana, está com dever de transmiti-la. Mas o que é, enfim, que nos tem de dizer esse Joaquim pré-histórico?
“Joaquim da Babilônia” é uma espécie de paródia de relato bíblico: da história da casta Susana que foi espiada no banho por dois velhos safados e, tendo resistido às propostas indecentes, denunciada como adúltera. Quase teria sofrido o pior se o inspirado profeta Daniel não tivesse revelado a verdade. Foi ele mesmo que escreveu mais tarde o livro bíblico, como necrológio da mulher mais pura de todos os tempos. Mas quando o marido de Susana o leu, achou muito incompleto. Daniel, espécie de mistura de poeta lunático e esperto chefe de publicidade da virtude, nem achara necessário mencionar o nome do marido – diz apenas “um judeu rico”, o que seria mera tautologia, assim como “historiador erudito/’ ou “sacerdote piedoso”. Daí Joaquim, embora já submerso nas trevas da história Do Oriente antigo, resolveu escrever aquela “relação sincera”, do seu próprio ponto de vista de marido da bela Susana, tão pura que só ele, o marido, a conhecia realmente. Sua relação será diferente.
A beleza de Susana deslumbrou a todos. Até aqueles dois velhos sábios não resistiram à tentação de desgraçar, se fosse possível, virtude tão fascinante. Mas ele, assim como todo mundo, não sabiam. Joaquim sabe melhor: Susana foi estéril. Não podia ter filhos. Não lhe ficou outro caminho para perpetuar-se do que a gloria de ter renunciado ao amor e enfim a tudo o que é humano. A sua virtude virou profissão e enfim instituição pública. E contra essa verdade oficial, lavrou Joaquim seu protesto.
Joaquim viajara muito. Conheceu, como comerciante viajante, todo o Oriente antigo, seus tesouros, perfumes, religiões e odaliscas, o Egito, a Grécia e países desconhecidos do Norte; um Ulisses oriental, não encontrando a paz de alma em parte alguma, nem na casa e cama de Susana, bela com uma estátua, que o abraçou sem o amar. Mas era ciumenta. Não tolerava outros deuses ao seu lado, nem sequer o Trabalho. Numa ocasião dessas, quando a estéril lhe quis vedar essa mais pura das satisfações, Joaquim cochichou pela primeira vez, meio brincando, aquela palavra fatídica: digamos “meretriz”. Depois, o povo, acreditando na falsa acusação, repetiu aquela mesma palavra, gritando. Enfim, quando Joaquim devia fazer o discurso de i9nauguração do monumento, dedicando à virtude da sua mulher ainda em vida, curvou-se no fim entre aplausos para ela, beijando-a, murmurando-lhe aos ouvidos: “Mulher pública!”. Do livro não consta nada mais; explicação nenhuma. E “qu’est-ce que cela prouve?” Aquela palavra três vezes repetida é mesmo a chave da obra enigmática.
Na primeira vez, é apenas o protesto do pagão oriental que escreveu o lvrio contra o culto puritano da virtude abstrata. Pois, embopra Joaquim tenha sido “judeu rico”, conforme o profeta Daniel, foi na verdade do espírito grego: o poeta flamengo Marnix Gijsen tampouco é grego por nascimento, mas só um grego saberia escrever estilo tão classicamente sóbrio, sazonando a descrição do Oriente antigo com anacronismos tão deliciosamente irônicos que atrás da Babilônia do romance se levanta a imagem do nosso mundo de hoje, com nossos comerciantes e sábios, mulheres (públicas ou não) e velhos às mais das vezes safados e com o poder publicitário da verdade oficial. No estilo reside o valor literário da obra. Mas seria pouco, isso.
Na segunda vez, aquela palavra exprime apenas a fúria do mundo vulgar e incompreensivo contra a Beleza: gostariam de destruí-la porque a consideram como privilégio. Mas não sabem como ela faz sofrer. Na cena da falsa acusação, que sofre parece Susana, sacrificada às falsas convenções da Sociedade. Mas Joaquim sabe melhor. De maneira paradoxal defende os dois velhos safados – “o desejo, num sexagenário, não é vergonha, mas sinal de força” – visitando-os na prisão antes de eles serem executados; e, mais paradoxalmente, são eles que procuram inspirar-lhe coragem. Quem sofre na verdade é esse Ulisses oriental, Ulisses o “sofredor divino” – símbolo do homem “tout court” na Babilônia da nossa civilização, indivíduo representativo, sacrificado aos valores convencionais dos quais um dos mais fortes e mais ferrenhos é a convenção do matrimônio. Aí reside o impulso emocional da obra, explicando as palavras solenes da última página:
“Adeus, enfim, á leitor desconhecido; Joaquim da Babilônia sauda-te. Por um instante ele surgiu do reino das sombras; agora, volta a desaparecer. Mas teria aparecido em vão se ninguém reparasse a gota de sangue do coração no seu caminho.” Os leitores de 7 edições repararam? “Joaquim da Babilônia” é livro para homens maduros, saturados de dolorosa experiência de vida. Livro temível que parece tratar apenas da esterilidade da Beleza, com maiúscula – mas, dizia Milton, “queres colocar o matrimônio ou qualquer outra instituição acima da exigência clara da misericórdia, este é ´fariseu.”. Joaquim, porém, escreveu sua parábola, que pareceu só tratar do matrimônio, para advertir contra a idolatria “da Virtude ou do Vício ou da Beleza ou da Glória ou do Trabalho” e de todas as instituições antropófagas da nossa civilização babilônica que nos fazem perder a alma. A virtude de Susana torna-se “instituição pública” assim; e por isso Joaquim virou-se para ela, dizendo-lhe aos ouvidos: “Mulher pública!”. A Bíblia, menos pudica nas expressões, fala mesmo, no Apocalipse, da “Grande Meretriz da Babilônia”. E ainda vivemos na Babilônia.
Da boca dos condenados recebeu, porém, Joaquim a lição da coragem que se parece com o conselho de remoto patrício holandês de quem escreveu essa história; dizia o Taciturno: “Point n’est besoin d’espérer pour entreprendre, ni de réussir por persévérer”. Para transmitir-nos essa mensagem, para sabermos que não estamos condenados se o quisermos assim, surgiu do reino das sombras o pré-histórico Joaquim: um ilustre desconhecido que saúda a nós, leitores desconhecidos, como homem e como irmão.



Texto originalmente publicado no Suplemento de “A manhã” em 10/07/1949