Theo van Doesburg e a nova
poesia
por Haroldo de Campos
[mantivemos a ortografia original de
Haroldo]
van doesburg: o artista plástico; o arquiteto. pontos
de referência obrigatórios para o estudo da evolução criativa de formas nas
artes visuais. veja-se, p. ex., a "poetica dell'architettura neoplastica"
de bruno zevi, onde há um retrato de corpo inteiro da intensa atividade factiva
do artista holandês, inclusive de suas controvertidas relações com a bauhaus de
gropius.
van doesburg: o poeta de vanguarda - item pouquíssimo
conhecido graças à importante "antologia dos marginais " (anthologie
der abseitigen") - "ultimatum que a lucidez de carola giedionwelcker
lançou contra o "blacout da história" - foram respostos em circulação
alguns poemas de van doesburg. palavras prévias da organizadora: "esta
antologia preocupa-se com os poetas cujas obras são de difícil acesso, por não
terem interessado aos grandes editores, aparecendo em tiragnes limitadas, de
rápido esgotamento. o destino, que lhes recusou um mais amplo círculo de
leitores e os relegou a um segundo plano, não nos parece compatível com sua
dimensão artística, sua personalidade intensa e sua importância na evolução
histórica da poesia." (en passant: manifestação histórica nacional de um
análogo processo de escamoteamento da obra de arte - a não reedição das poesias
e das invenções em prosa de oswald de andrade, para não falar de inéditos).
van doesburg pertence à categoria dos
pintores-poetas (kurt schwitters, kandinsky, klee, raoul hausmann, hans arp),
identificável principalmente na moderna literatura de língua alemã, cuja obra,
embora, em certos casos, circunstancial e "bissexta", está mais
próxima do real sentido criativo de uma nova poesia, por suas características
de desnudamento formal, do que a da maioria dos profissionais do verso,
peritos-provadores do almbique lírico ou sombrios oficiantes de cinzentas
metafísicas, que, malgrado o lance de dados mallarmáico (1897), continuaram e
continuam aguando a tradução poética viva.
mas não é só. van doesburg foi dos que mais
conscientemente, entre esses experimentalistas, colocou o problema de uma nova
forma poética. não ficou nas soluções do tipo kandinsky/arp: uma espécie de
abstracionismo temático; transposição, em termos de conceitos verbais, dos
efeitos visuais da arte não figurativa, o que incluía um princípio de
organização ainda discursivo, não muito diferente da escrita automática. van
doesburg não se deteve apenas numa revolução temática, conteudística, que só
até certo ponto e táticamente corresponderia a uma nova visão do poema.
enfrentou o poema como um problema de relações e procurou resolvê-lo com seu
material específico - a palavra - sem apelo a qualquer retórica, ainda que de
conteúdos abstratos. seu livro "soldatenverzen" (1976 - "versos
de soldado") compõe-se de uma série de poemas com duas, três ou quatro
palavras apenas, o "exhibit" que apresentamos (voorbijtrekken de
troep" - "tropa em desfile") evidencia este sentido de estrutura
rigorosamente econômica, sem intromissão de qualquer resíduo discursivo ou
arabesco metafórico, procurando criar, com elementos exclusivamente gráfico-sonoros,
uma onomatopeia-ideograma de uma tropa em movimento. não nos iluda o
vocabulário militar, próprio da época (1ª guerra mundial - em 1014 van doesburg
fora convocado), contradiço também em caligramas de apollinaire ou nas
"parole in libertà" de marinetti e sei grupo. no "tropa em
desfile" não há nenhuma intenção de arranjo pitográfico exterior, como, p.
ex., na metralhadora e na bota do "2e. canonnier conducteur", poema
publicado por apollinaire mais ou menos à mesma época (1915); tampouco a
figuração por assim dizer "imitativa" da velocidade que ocorre no
"après la marne, joffre visite le front en auto" (1919), de
marinetti, caos verbal "parolibrista", frenético malabarismo
tipográfico desprovido de qualquer vontade construtiva. no poema de van
doesburg a noção de organização rígida está sempre presente: pode-se dizer que,
descartada a temática circunstancial, já há uma antevisão de um rpoblema
concreto de compisição. a invasão do bloco verbal pelo branco da página é
calculada de maneira a criar um movimento intrínseco, não "figurado",
mas resultante do jogo de fatores de proximidade e semelhança. os cortes em
"ransel" e "ruischen", isolando e repetindo no campo visual
elementos idênticos de modo a produzir uma espécie de sístole-diástole rítmica
(abrir e fechar de espaço); a minimização de estrutura de "ruischen"
a "r", resolvendo como um desfecho-silêncio (não um "finale
enfático") a andadura da peça, o que lembra certas estruturas análogas da
música moderna (webern, p.ex.); a exploração consciente das semelhanças de
letras (h/n, e/c), impondo um sentido de ordem às desarticulações do segmento
ruischen e contribuindo para a dinâmica desejada; todos esses recursos (para
não falar no uso até certo ponto interessante, embora discutível, pela margem
de arbitrariedade, de negritos e grifos, intercâmbios de caixa alta e baixa,
com função tônicas-focos para uma leitura-partitura oral-visual) dão um nível
de interesse extremamente atual às pesquisas de theo van doesburg, que parece
ter trazido para sua poesia a disciplina neoplástica do movimento "de
stijl" - dique à anarquia dadaísta;futurista; convite a uma poesia nova e
construtiva.
outras obras de van doesbrug:
carola giedion welcker sobre a prosa de van
doesburg: "ele procura evocar as palavras elementares e constantes e
neutralizar a atmosfera trágica e sentimental. pretende construir uma prosa
universal, não-anedótica e pura, em consonância com seus princípios em pintura
e em arquitetura". infelizmente, não são reproduzidos enxertos desses
invenções em prosa - publicadas na revista "de stijl" e portanto de
difícil acesso - na "antologia dos marginais".
Artigo originalmente publicado no suplemento
dominical do Jornal do Brasil de 7 de julho de 1957.
Complementamos esse artigo de Haroldo com a tradução
de "Volle maan", de Theo van Doesburg, feita por Mário Faustino A
tradução de Faustino também foi publicada no suplemento dominical do Jornal do
Brasil, mas a data é ilegível.
LUA CHEIA
Fujo da cidade.
Estico a vereda.
Procuro os caminhos campestres.
Procuro a lua.
Procuro-me a mim mesmo.
Talvez me encontre.
Lá pela esquina.
Lá o caminho.
Lá está o feno em montes
Lá com minha alma
ao mesmo tempo
quero correr sob o sol da lua.
É uma casa?
Era uma casa
agora é carbúnculo
é uma granja?
era uma granja
Agora é claro e escuro
Será por acaso Feno?
Será por acaso Feno?
Feno foi pela manhã,
agora esguicha a terra
em ouro vivo
e o feno é empréstimo.
E aquilo é água?
Era água uma vez
Agora é madrepérola
Aquilo é um barco?
Foi um barco,
agora ergue-se um escuro pássaro
pela metade fora d’água.
Isto é a minha mão?
Foi uma mão
Agora é uma estranha
Planta branca.
II
A lua está no ar!
A auriargêntea lua.
Um copo é universo
cheio de um líquido prateado
Minha boca jaz à imagem.
Bebo. Bebo luz
O ar é luz.
Respiro luz.
Lá bate asagigante.
sobre minha cabeça bandonuvem
Quem antes do ouvir
e não do ver nasce?
Qual fogo da luz
não veio a meu semblante?
Luz nasce em minhalma
Mal ouvia ainda o pato,
seu grassitar no charco.
Não sabia nem quem nem onde eu era.
Meu peito lento e rápido se abria
Então morri, mas logo outra vez vivia.
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