terça-feira, 31 de maio de 2016

Van Doesburg, por Haroldo de Campos

Theo van Doesburg e a nova poesia

por Haroldo de Campos

[mantivemos a ortografia original de Haroldo]

van doesburg: o artista plástico; o arquiteto. pontos de referência obrigatórios para o estudo da evolução criativa de formas nas artes visuais. veja-se, p. ex., a "poetica dell'architettura neoplastica" de bruno zevi, onde há um retrato de corpo inteiro da intensa atividade factiva do artista holandês, inclusive de suas controvertidas relações com a bauhaus de gropius.

van doesburg: o poeta de vanguarda - item pouquíssimo conhecido graças à importante "antologia dos marginais " (anthologie der abseitigen") - "ultimatum que a lucidez de carola giedionwelcker lançou contra o "blacout da história" - foram respostos em circulação alguns poemas de van doesburg. palavras prévias da organizadora: "esta antologia preocupa-se com os poetas cujas obras são de difícil acesso, por não terem interessado aos grandes editores, aparecendo em tiragnes limitadas, de rápido esgotamento. o destino, que lhes recusou um mais amplo círculo de leitores e os relegou a um segundo plano, não nos parece compatível com sua dimensão artística, sua personalidade intensa e sua importância na evolução histórica da poesia." (en passant: manifestação histórica nacional de um análogo processo de escamoteamento da obra de arte - a não reedição das poesias e das invenções em prosa de oswald de andrade, para não falar de inéditos).

van doesburg pertence à categoria dos pintores-poetas (kurt schwitters, kandinsky, klee, raoul hausmann, hans arp), identificável principalmente na moderna literatura de língua alemã, cuja obra, embora, em certos casos, circunstancial e "bissexta", está mais próxima do real sentido criativo de uma nova poesia, por suas características de desnudamento formal, do que a da maioria dos profissionais do verso, peritos-provadores do almbique lírico ou sombrios oficiantes de cinzentas metafísicas, que, malgrado o lance de dados mallarmáico (1897), continuaram e continuam aguando a tradução poética viva.

mas não é só. van doesburg foi dos que mais conscientemente, entre esses experimentalistas, colocou o problema de uma nova forma poética. não ficou nas soluções do tipo kandinsky/arp: uma espécie de abstracionismo temático; transposição, em termos de conceitos verbais, dos efeitos visuais da arte não figurativa, o que incluía um princípio de organização ainda discursivo, não muito diferente da escrita automática. van doesburg não se deteve apenas numa revolução temática, conteudística, que só até certo ponto e táticamente corresponderia a uma nova visão do poema. enfrentou o poema como um problema de relações e procurou resolvê-lo com seu material específico - a palavra - sem apelo a qualquer retórica, ainda que de conteúdos abstratos. seu livro "soldatenverzen" (1976 - "versos de soldado") compõe-se de uma série de poemas com duas, três ou quatro palavras apenas, o "exhibit" que apresentamos (voorbijtrekken de troep" - "tropa em desfile") evidencia este sentido de estrutura rigorosamente econômica, sem intromissão de qualquer resíduo discursivo ou arabesco metafórico, procurando criar, com elementos exclusivamente gráfico-sonoros, uma onomatopeia-ideograma de uma tropa em movimento. não nos iluda o vocabulário militar, próprio da época (1ª guerra mundial - em 1014 van doesburg fora convocado), contradiço também em caligramas de apollinaire ou nas "parole in libertà" de marinetti e sei grupo. no "tropa em desfile" não há nenhuma intenção de arranjo pitográfico exterior, como, p. ex., na metralhadora e na bota do "2e. canonnier conducteur", poema publicado por apollinaire mais ou menos à mesma época (1915); tampouco a figuração por assim dizer "imitativa" da velocidade que ocorre no "après la marne, joffre visite le front en auto" (1919), de marinetti, caos verbal "parolibrista", frenético malabarismo tipográfico desprovido de qualquer vontade construtiva. no poema de van doesburg a noção de organização rígida está sempre presente: pode-se dizer que, descartada a temática circunstancial, já há uma antevisão de um rpoblema concreto de compisição. a invasão do bloco verbal pelo branco da página é calculada de maneira a criar um movimento intrínseco, não "figurado", mas resultante do jogo de fatores de proximidade e semelhança. os cortes em "ransel" e "ruischen", isolando e repetindo no campo visual elementos idênticos de modo a produzir uma espécie de sístole-diástole rítmica (abrir e fechar de espaço); a minimização de estrutura de "ruischen" a "r", resolvendo como um desfecho-silêncio (não um "finale enfático") a andadura da peça, o que lembra certas estruturas análogas da música moderna (webern, p.ex.); a exploração consciente das semelhanças de letras (h/n, e/c), impondo um sentido de ordem às desarticulações do segmento ruischen e contribuindo para a dinâmica desejada; todos esses recursos (para não falar no uso até certo ponto interessante, embora discutível, pela margem de arbitrariedade, de negritos e grifos, intercâmbios de caixa alta e baixa, com função tônicas-focos para uma leitura-partitura oral-visual) dão um nível de interesse extremamente atual às pesquisas de theo van doesburg, que parece ter trazido para sua poesia a disciplina neoplástica do movimento "de stijl" - dique à anarquia dadaísta;futurista; convite a uma poesia nova e construtiva.
outras obras de van doesbrug:

poesia: "volle maan" ("lua cheia") - 1918; "se stem uit de diepte" ("a voz da profundidade") - 1915; "xbeelden" - 1917-1920; "klankbeelden" - 1920.
carola giedion welcker sobre a prosa de van doesburg: "ele procura evocar as palavras elementares e constantes e neutralizar a atmosfera trágica e sentimental. pretende construir uma prosa universal, não-anedótica e pura, em consonância com seus princípios em pintura e em arquitetura". infelizmente, não são reproduzidos enxertos desses invenções em prosa - publicadas na revista "de stijl" e portanto de difícil acesso - na "antologia dos marginais".


Artigo originalmente publicado no suplemento dominical do Jornal do Brasil de 7 de julho de 1957.


Complementamos esse artigo de Haroldo com a tradução de "Volle maan", de Theo van Doesburg, feita por Mário Faustino A tradução de Faustino também foi publicada no suplemento dominical do Jornal do Brasil, mas a data é ilegível.  


LUA CHEIA

Fujo da cidade.
Estico a vereda.
Procuro os caminhos campestres.
Procuro a lua.
Procuro-me a mim mesmo.
Talvez me encontre.

Lá pela esquina.
Lá o caminho.
Lá está o feno em montes
Lá com minha alma
ao mesmo tempo
quero correr sob o sol da lua.

É uma casa?
Era uma casa
agora é carbúnculo
é uma granja?
era uma granja
Agora é claro e escuro
Será por acaso Feno?
Será por acaso Feno?
Feno foi pela manhã,
agora esguicha a terra
em ouro vivo
e o feno é empréstimo.
E aquilo é água?
Era água uma vez
Agora é madrepérola
Aquilo é um barco?
Foi um barco,
agora ergue-se um escuro pássaro
pela metade fora d’água.
Isto é a minha mão?
Foi uma mão
Agora é uma estranha
Planta branca.

II

A lua está no ar!
A auriargêntea lua.
Um copo é universo
cheio de um líquido prateado
Minha boca jaz à imagem.
Bebo. Bebo luz
O ar é luz.
Respiro luz.
                    Lá bate asagigante.
                    sobre minha cabeça bandonuvem
Quem antes do ouvir
e não do ver nasce?
Qual fogo da luz
não veio a meu semblante?
                   Luz nasce em minhalma
Mal ouvia ainda o pato,
seu grassitar no charco.
Não sabia nem quem nem onde eu era.
Meu peito lento e rápido se abria
Então morri, mas logo outra vez vivia.

  

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