UM PRÊMIO NOBEL PARA A
HOLANDA
Por Otto Maria Carpeaux
Um grupo de admiradores
do romancista holandês Arthur van Schendel pediu para ele o Prêmio Nobel de
Literatura, distinção que nunca, ainda, foi conferida aos Países Baixos. Embora
a Holanda, situada entre a França, a Inglaterra, e a Alemanha, seja espécie de espelho da Europa, reunindo em seu
seio as convicções cristãs mais firmes e um socialismo radical mais consciente
das suas responsabilidades culturais, reunindo as qualidades da liberdade
inglesa, do espírito crítico francês e da solidez científica alemã – nunca o
mundo deu muito importância à literatura holandesa; dos tempos passados, do
grande Barroco holandês do século XVII, dos Hooft, Bredero, Vondel, Dullsert,
nem se fala; mas o mundo tampouco tomou conhecimento da poesia admirável da
"geração de 1889", dos Perk, Kloos, Gorter, de que são os herdeiros,
hoje, a poetisa Henriette Roland Holst e aquele romancista Arthur van Schendel.
Contudo, ele parece o
escritor mais lido do seu país em nosso tempo: mas foi justamente esse fato que
causou na própria Holanda forte oposição contra as reivindicações dos seus
admiradores. Há quem achasse a obra de Van Schendel indigna da mais alta
distinção literária porque se trata de literatura "brilhante" e no
fundo evasionista, espelho de uma Europa "satisfeita" que já não
existe. Com respeito às obras mais lidas de Van Schendel, as restrições parecem
justificadas; traduzem as cartas de amor da religiosa portuguesa, deu biografia
meio romanceadas de Shakespeare e Verlaine, escreveu romances pseudo-históricos
que se passam na Itália da Renascença e
na França do "Ancien Régime". Sua suposta
obra-prima dos anos antes de 1914, "Een zwerver verliefd" ("Um
vagabundo enamorado"), é uma obra típica de um evasionista de alto nível
estilístico, mais ou menos assim como um Rilke escreveu antes de tornar o poeta
sério dos "Poemas Novos" e das "Elegias de Duíno". Este Van
Schendel representa o preciosismo literário de uma época materialmente
satisfeita e espiritualmente pouco inquieta. Ou então, para falar em termos
holandeses: os tradicionais escrúpulos
religiosos dessa gente nórdica já estavam substituído pelo cosmopolitismo
estético de elites requintadas; e a luta tensa contra o mar, que sempre ameaça
destruir os campos holandeses bem cultivados, substituída pelo gozo das
riquezas do mais fantástico dos Impérios coloniais. O resultado foi uma
literatura admirável de alto nível, mas de que o mundo não precisava tomar
conhecimento. Até se chegou ao ponto de negar a existência duma poesia
holandesa: e os mais grosseiros chegaram a negar a existência duma alma
holandesa - em vez de uma alma holandesa apenas possuiriam uma bolsa cheia de
dinheiro.
Aí está uma injustiça
evidente. Cada um dos povos europeus produziu valores literários especiais, não
substituíveis por outros e nunca desistirei de chamar a atenção para essas
"pequenas literaturas", por mais que isso desagrade aos comodistas,
porque a Europa – nossa mãe – não é a
França nem a Inglaterra nem a Itália, mas sim o conjunto de todas aquelas
nações, grandes e pequenas. Esplendor e miséria da Europa residem na sua
diversidade de muitas línguas, muitas almas. A alma holandesa também existe.
Mas é verdade que não se exprime, principalmente, de maneira literária. Sabe-se
que os holandeses são muito laboriosos; mas o seu labor é duma espécie bastante
peculiar. Consiste na conquista da própria terra... Durante muitos séculos os
holandeses conquistaram, passo a passo, o seu país contra a resistência do
elemento hostil, do mar. E com tenacidade incrível defenderam durante séculos o
país contra os ataques sempre renovados da água. Essa luta sem fim formou o
caráter holandês: homens vigilantes, silenciosos, conscientes de perigos
transcendentais da parte dum inimigo implacável. Formou os calvinistas
holandeses, sempre à procura de quaisquer pecados ocultos que lhes ameaçam a
graça divina, a predestinação de habitar essa terra, a mais pobre da Europa, e
de transformá-la na mais rica dos cinco continentes. Homens dessa índole não
falam muito. Não se confessam nem se explicam. Não são poetas. Preferem a arte
muda da pintura. Mas há uma poesia inconfundível na própria atmosfera
holandesa, nas várias planícies úmidas com os inúmeros canais e os solitários
moinhos de vento nos confins de horizontes brumosos, no olhar triste das vacas
sedentárias, na uniformidade alegre das pequenas casas cor de tijolo, nos
navios veleiros que, como espectros fantásticos, descansam silenciosamente nos
portos das pequenas cidades caladas. Esperando – a evasão para o Oriente, para
os países de sonho e beleza.
Na Europa ainda não se
resolveu o problema transcendental de conferir o sentido, e com isso beleza, à
vida do trabalho. A tentação da fuga é grande. Mas, para variar um versos do
nosso grande poeta "seria uma viagem, não seria uma solução", Arthur
van Schendel também já sucumbira à tentação de evadir-se. Nascido na Batávia,
na capital do Império fantástico dos holandeses, sonhava com a Itália da
Renascença, com a Inglaterra elisabetana, com a França do "Ancien
Régime", enquanto residindo em Haarlem, em Edam, pequenas cidades abafadas
da pequena Holanda. Mas a partir de 1939 – poder admirável de renovação de um
artista - as suas obras, datadas de Florença, de Bellevue, de Sestri Levante,
da "Europa, enfim, falam da Holanda; descobrem a alma holandesa.
"A fragata Joana
Maria", romance escrito em 1930, foi uma segunda estreia, surpreendendo e
comovendo a nação. E a história de um daqueles navios veleiros fantásticos,
assim como os pintou Willem van de Velde, que ficam solitários e silenciosos no
porto da pequena cidade calada, esperando angustiados a hora da fuga para os
mares do Oriente. A fragata "Joana Maria" encarna todas as saudades
do marujo Jacob Brouwer, que leva a vida toda para apoderar-se do navio dos
seus sonhos. Mas quando a "Joana Maria" enfim é sua, revela-se como
barca velha e miserável, boa só para fornecer oportunidade de deixar-se cair,
numa hora de perturbação, do cordame e encontrar a morte nas águas turvas do
porto, onde a fragata "Joana Maria" ficará descansando, solitária e
silenciosa.
Arthur van Schendel
compreendera afinal que não é preciso procurar nos sete mares do sonho a
verdadeira significação da água que é o destino dos holandeses. É a mesma água
misteriosa, a dos rios e canais da Holanda, que constitui o destino de Maarten
Rossaart, personagem principal do romance "O homem da água", Maarten
é um fascinado: com a tenacidade fanática do calvinista dedica-se à luta silenciosa
contra o elemento que é, nas viagens solitárias do marinheiro de água doce, seu único companheiro. Sempre fica dirigindo seu navio água abaixo, em direção ao
delta do Reno, através da planície brumosa e dos bosques úmidos que Ruysdael
pintou: no fim da viagem espera-o o sol enorme, vermelho, levantando-se sobre o
mar livre. Mas depois, sempre é a volta triste rio acima enquanto o sol esconde
atrás de horizontes inacessíveis, assim como o terrível Deus dos calvinistas se
esconde atrás das nuvens, deixando o homem na noite da sua vida mesquinha e
desconsolada.
O símbolo torna-se mais
"direto" no romance "Uma tragédia holandesa": Gerbrand
Werendonk trabalha durante a vida inteira, arruinando sua existência e a dos
seus, para restituir o dinheiro furtado delo pai. Essa gente, trabalhando
heroicamente, não tem nada de heróica. Van Schendel, na sua segunda fase, é
romancista de vidas triviais e até mesquinhas. Mas o quadro escuro, frio e
incômodo em que Gerbrand Werendonk faz de noite as contas dos seus pequenos
negócios, procurando verificar, angustiado, se a dívida já diminuiu, esse
quarto escuro está, como num quadro claro-escuro de Rembrandt, secretamente
iluminado por uma luz interna que se assemelha ao sol sobre os rios e canais de
Maarten Rossaart, o sol do Deus terrível e longínquo que reina sobre essas
almas assustadas e escurecidas.
A mesma luz interior
ilumina os passeios noturnos de Engelbertus Kompaan, no "Homem rico",
passeios solitários ao longo dos canais desertos que atravessam a cidade de
Amsterdam e nos quais se refletem as casas abandonadas de outras épocas,
outrora ricas e brilhantes e as figuras de mendigos e desesperados, candidatos
ao suicídio noturno. Engelbertus é possuído pela ideia de desviar tal desgraça,
de desperdiçar o seu dinheiro para acalmar a cólera divina. A sua mania
filantrópica é espécie de perversão
diabólica do amor cristão. Ela, assim como Gerbrand, pretende expiar um crime
que não cometeu. É um Don Quixote holandês, convertendo em dever social e
mandamento divino a paixão do trabalho sem finalidade, o sonho recalcado que
não é nada senão uma miragem no fundo da água suja de um canal deserto.
Arthur van Schendel, o
do primeiro e o da segunda fase, sempre foi poeta. Como poeta, deu voz aos
portos mudos de Van de Velde, aos campos mudos de Ruysdael, aos escuros quartos
de Rembrandt. Povoou-os de Don Quixote que se acreditam santos, de santos que
se acreditam pecadores, de pecadores que se salvam pelo trabalho silencioso,
única salvação da consciência. É esta mesma a última profissão de fé de Arthur
van Schendel, fé de um descrente mas ainda capaz de deslocar as montanhas da
desgraça: pela vontade ferrenha de cumprir sempre, cada dia e a todo momento, o
seu dever. E nada mais. Sabedoria triste e morosa; mas constitui, conforme
acredita Van Schendel, a força invencível da alma holandesa e do Ocidente.
Esse resultado da
"segunda fase" de Van Schendel corresponde à "segunda fase" da própria Europa. Enquanto Van Schendel, o da
"primeira fase", parecia escritor universal e europeu, apenas foi uma
evasionista de dimensões regionalistas; quando ele se voltava para sua Holanda
regional, começou a dar forma aos problemas da Europa do seu e do nosso tempo,
visto através de um temperamento holandês. As almas pobres e mesquinhas da sua
gente são símbolos de humanidade sofredora. As pequenas cidades e os canais
desertos da sua terra são purgatórios silenciosos. E a sabedoria triste do seu
dogma, abandonado promete a salvação final, Arthur van Schendel, o mais típico
dos holandeses, é o mais europeu dos escritores. Chama-se a defender, mesmo sem
fé na colheita, o jardim ameaçado pelo mar; desperdiçar, mesmo sem amor, a vida
no serviço dos naufragados; expiar, mesmo sem contrição, o crime que é nosso
sem o termo cometido. Pode ser – não está certo – que então a tormenta da
consciência se acalme. Também não será a felicidade. Mas é a fidelidade para
consigo mesmo. E isto é alguma coisa; se não pé tudo, pelo menos é muito.
Artigo publicado
originalmente no Diário de Pernambuco, em 5 de setembro de 1946.
Coincidentemente, Van
Schendel morreu seis dias depois da publicação deste artigo, em 11 de setembro.
Carpeaux não tinha como saber, já que o anúncio foi feito apenas 50 anos depois, mas Van Schendel foi indicado oficialmente ao
Prêmio Nobel, em 1938.