domingo, 1 de novembro de 2015

Van Ostaijen, poeta holandês

Van Ostaijen, poeta holandês

Por José Roberto Teixeira Leite

O desconhecimento, no Brasil, da moderna literatura holandesa é um fato. Há tempos dedicou Otto Maria Carpeaux um artigo à obra e à personalidade do romancista Multatuli (pseudônimo de E. D. Dekker, 1820-1887), autor do romance Max Havelaar, onde se analisa a crueldade da colonização holandesa nas Índias; e em suas Noções de História das Literaturas dedicou Manuel Bandeira – estribado em Van Thiegen e Prampollini – uma das poucas páginas a essa literatura que são os pontos mais elevados Vondel, no passado, e no presente Huizinga, Coster, o grande poeta Kloos, Van Oudshoon – autor de Willem Merten - , etc. Mas foi só: nenhuma outra referência ou alusão encontramos, no Brasil de hoje, a essa literatura que teimamos em ignorar, decerto acreditando na tão propalada invenção de que, ao contrário da pintura – tão importante desde o século XV –, a literatura dos Países Baixos não tem grande valia. Não a terá, decerto, se comparada à pintura – gênero natural de expressão, em que os neerlandeses melhor se acharam e ainda se acham. Mas não há como subestimar a prosa e a poesia holandesas, embora uma língua particularmente difícil e pouco utilizada fora dos Países Baixos seja entrave quase insuperável a seu conhecimento. É modesta contribuição a tal conhecimento o presente artigo, que trata de um dos mais originais poetas europeus do século atual: Paul van Ostaijen. Depois, é de importância realçar a obra desse escritor falecido em 1928, numa época em que uma boa parcela da jovem poesia brasileira, influenciada pela concretismo, tenda valorizar, no poema, aquele lado visual tantas vezes desprezado anteriormente. Porque Van Ostaijen, a quem não podemos considerar um concretista, a não ser resvalando em grosseira generalização, em muitos de seus poemas antecipa-se a certas conquistas espaciais dos concretistas, podendo ser inclusive considerado um precursor da tendência.
Não é estranhável que Paul van Ostaijen tenha principiado sua carreira de escritor por uma obra dedicada às artes visuais. Tinha então apenas 22 anos – nascera em 1896 –, e a Grande Guerra – que a de 1939-1945 provaria, até segunda ordem, não ter sido tão grande como muitos julgavam –, chegava a seu fim com a derrota alemã.
Entusiasmado pelas conquistas da arte moderna, preconizava-lhe – numa época heroica e ainda indecisa – um brilhante futuro no seio da civilização ocidental. Criado num ambiente ultra burguês – pai catoliaão, capitalista –, numa das cidades mais burguesas da Europa, Antuérpia, frequentando na infância e adolescência os meios burgueses de que cedo se enojaria, era por uma vida de artista e pelo fascínio da arte e da poesia modernas que Van Ostaijen procurava dar vasas à sua nausée. No ambiente de verdadeiro charco estagnado que era, do ponto de vista cultural, Flandres de antes da Guerra de 1914, Van Ostaijen era dos poucos jovens que procuravam novas modalidades de expressão, uma reação qualquer contra o marasmo reinante. Simbolismo e dandyismo – movimento de que talvez, no Brasil, fosse eco da afetação de Afrânio Peixoto nos inícios de sua carreira, na Bahia, o Julio Afrânio que publicara Rosa Mística e que, muito e muito jovem, atravessava as ruas de Salvador com um lenço na sinistra e uma rosa rubra na destra... –, simbolismo e dandyismo eram duas escolas literárias em voga, à época, no Flandres; e o último, como é claro, derivado do primeiro. Van Ostaijen ingressou nas fileiras do segundo, para grande desgosto do pai, a quem repugnava a vida boêmia, de artista desmiolado, levada pelo filho; travaja-se bizarramente, com modelos que ele próprio desenhava, e granjeou a alcunha de Míster 1830, algo paradoxal no rapaz que, alguns anos depois, proclamaria as excelências da estética moderna. Mas como e não possível reconhecer no Afrânio Peixoto de seus melhores romances o doidivanas de Rosa Mistica, também o Míster 1830 não deve ser confundido com o poeta lírico Van Ostaijen, nascido de suas cinzas.
A invasão alemã da Bélgica, e a ocupação da Antuérpia, de 1914 a 1918, pelas tropas germânicas, possibilitará ao jovem poeta maior amadurecimento, levando-o a abandonar o dandyismo – cuja filosofia de ceticismo um pouco à la Oscar Wilde já não condizia com os termos da realidade brutal que estava então vivendo. O fundo místico do poeta, porém, breve irá fazer com que ele seja um dos entusiastas seguidores do Unanimismo de Jules Romais, de cujo espírito acha-se impregnado seu livro de estreia, Music Hall (1916). A publicação de Music Hall causou, aliás, espanto e escândalo, já que no volume quebrava Van Ostaijen inteiramente com aquela tradição literária a que se tinham acostumado todos, em Flandres. Alguns de seus poemas mais próximos da poesia de Jules Laforge, por exemplo, por sua ironia foram duramente criticados. Em Het Sienjaal, segunda coletânea de versos, aparecida pouco após o termino da Guerra, Van Ostaijen resvala para um humanitarismo, um sentimentalismo, por vezes, de que posteriormente recuaria, rejeitando, então, o volume. Isso não impediria, porém, que uma legião de imitadores começasse, na Bélgica e na Holanda, a poetar à maneira segunda de Van Ostaijen.  Em 1918, após um malogro político – Van Ostaijen era partidário das ideias ativistas, isto é, sonhava com a independência da Bélgica de língua holandesa –, o poeta é obrigado a exilar-se em Berlim. Ali demorar-se-á até 1921, tomando parte ativa no movimento desencadeado e mantido pelos orientadores da revista Der Sturm, com Herwarth Wlaten à frente. Era porém com pintores e escultores que gostava de trocar ideias - e aí surpreendemos, mais uma vez, a vocação de visual do próximo autor de Bezette Stad (1921). Escreveu, durante o período berlinense, uma grande quantidade de narrativas. Grotescas umas, burlescas outras, irônicas, absurdas, satíricas. Foi, avant le mot, um dos que se valeram, e com êxito, da escrita automática, que os surrealistas levariam ao paroxismo. Foi decerto de suas conversas com os artistas visuais que derivou a ideia, que desenvolveria posteriormente numa teoria, de que a forma do poema é o próprio poema, e subordinar essa forma a uma temática determinada é restringir o poema. Usando de termos mais pictóricos, mais visuais, diríamos que Van Ostaijen chegava à conclusão de que deveria dar maior importância à matéria poética, do que à essência, ao anedótico. Inventou, então, uma tipográfica rítmica, apelando para a forma visual do vocábulo – não à maneira de Appolinaire ou à de Sá-Carneiro, em seu Manucure, para ilustrar o texto: ao contrário, para ampará-lo. Usou tipos de vários corpos e impressos em diferentes cores, não como um recurso pitoresco, mas porque sentia a necessidade de basear seus textos com elementos visuais. Datam de tal época os poemas de Feesten van Angst en Pijn, espécie de continuação de Bezette Stad. O regresso à Bélgica dá-se em 1921, quando já a saúde de Van Ostaijen começa a declinar. Abre ele, em Antuérpia, uma galeria de arte – que depois troca por outra, A La Vierge Poupine, em Bruxelas. Em A La Vierge Poupine organiza uma série de exposições de artistas contemporâneos, belgas ou estrangeiros. Tenta formar uma escola flamenga moderna, mas fracassa em seu intento. Entrementes, escreve alguns de seus melhores poemas, imbuídos daquele puro lírico que definia nessas palavras significativas e atuais: “Estou procurando o poema sem sujeito: o sujeito do poema é o próprio poema”. Em 1928, poucos meses antes de morrer, aos 32 anos, vítima da tuberculose, funda Paul van Ostaijen com Burssens e Du Perron a revista Avontuur. Era já tarde em sua vida, porém. Calar-se-ia em breve a voz do poeta, que morreu quando apenas entrevia o seu verdadeiro caminho, e quando buscava sem desânimos dar vasas à sua mensagem.    



Artigo originalmente publicado no suplemento dominical do Jornal do Brasil em 14/02/1959. A tradução do poema é do próprio José Roberto Teixeira Leite.

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