A fé perdida
Otto Maria Carpeaux
Encontrei pessoas muito cultas,
apreciadora da grande pintura holandesa, sabendo também que esse pequeno país é
o berço da filologia moderna, da ciência comparada das religiões, de grandes
descobertas nos setores de física e biologia – mas duvidam da existência de uma
literatura holandesa. A pouco divulgação da língua serve de desculpa a quem
ignora os Vondel e Bredero e Dullaart, os Multatuli e Perk, os Kloos e Van
Schendel, nomes apenas, mas dos maiores nomes da literatura universal de que a
holandesa, nascida no “carrefour” das civilizações francesa, alemã e inglesa,
sempre foi e ainda é um microcosmo. Também ela é barômetro para medir certas
pressões e tensões. O crítico literário sempre deveria acompanhá-la. Dois
acontecimentos holandeses recentes sirvam de exemplo.
O primeiro desse acontecimentos foi a
morte da maior poetisa de língua holandesa, Henriette Roland Holst. Morreu aos
83 anos de idade, sem ter recebido o Prêmio Nobel, provavelmente por
preconceitos ideológicos. No entanto, a Holanda, país do calvinismo mais
ortodoxo e de uma minoria católica muito zelosa, quase agressiva, lamentou
unanimente a morte da poetisa socialista.
A religião é, na raiz, tudo na Holanda.
Apenas são diferentes os credos. Entre os intelectuais de 1880, quando
Henriette Roland Holst entrou na vida literária, o credo dominante era o da
beleza: parnasianas que ou (pré-simbolistas) substituam o ideal de perfeição
moral dos antepassados pelo da perfeição estática. Sonetos e tercetos são as
primeiras poesias de Henriette Roland Holst. Mas não foi acaso a escolha do
metro de Dante. A vida moderna parecia feia aos esteticistas da época; à
poetisa parecia um inferno, que descreveu num livro sobre “As relações entre o
capital e o trabalho na Holanda”. Como Dante, que ela admirava muito, quis
tomar partido para dizer o que convinha dizer à cidade. Vinte anos mais tarde,
a sonetista escreverá um tratado sobre “A ação revolucionárias das massas”. Em
1918, o volume de versos “Fronteiras abolidas’ saudará a revolução na Rússia,
apostrofada como “país do amor” Enfim, a biógrafa de Rousseau, Tolstói, Rosa
Luxemburg e (sua última obra) Romain Rolland, separou-se do partido comunista,
gravemente decepcionada. A autora dos grandes hinos “Aos quebrados” e “Reza ao
Socialismo” tinha reconhecido os motivos puramente humanitários (e religiosos)
do seu radicalismo político e social. Nunca renegou, porém, esse seu socialismo
humanista, fé de sua vida. Nessa fé, que ainda é a de tantos dos melhores
europeus, morreu Henriette Roland Holst.
No momento de sua morte, que foi motivo
de luto nacional, rebentou o escândalo da revista “Podium”, órgão de
vanguardistas surrealistas, neonaturalistas e outros rebeldes: denunciaram-se
tentativas das autoridades de sufocar, financiariamente, a revista, porque tinha
publicado capítulos do romance “Eu tenho sempre razão”, de W.F. Hermans, que
foi líder literário da Resistência holandesa. Chegaram a processar, por
blasfêmia, o autor dessa obra, uma das mais significativas da literatura
europeia de hoje. O personagem principal, Lodewijk Stegman, sempre foi rebelde:
contra seus pais e contra o país, contra seus professores e contra a religião.
A ocupação alemã, interrompendo-lhe os estudos, serviu-lhe para entregar-se à
vida boêmia. Da guerra na Indonésia desertou, preferindo ao serviço militar os
negócios do mercado negro e os amores fáceis, embora dolorosos. Seu supremo egocentrismo
tampouco lhe permitiu continuar as esboçadas atividades revolucionárias. O que
Lodewijk quer é simples e difícil ao mesmo tempo: quer sempre ter razão, contra
todos os outros. E é isto o que não perdoaram ao seu autor, W.F. Hermans.
O romance é superior à maior parte das
obras existencialistas, hoje tão famosas. Hermans não é, aliás, adepto da
filosofia de Sartre nem de filosofia alguma. Descreve, magistralmente, um caso
psicológico: a transformação da Resistência em ressentimento. É definitiva a
frase pela qual Lodewijk pretende justificar sua posição fora de todos os
partidos políticos: “Quem insulta o próximo, chamando-lhe de fascista ou
chamando-lhe comunista, sempre tem razão.” Concluíram os críticos que o próprio
Hermans é niilista. Mas antes merece ser chamado de geógrafo que descobriu país
novo, espécie de “terra de ninguém”. Na primeira guerra mundial, a tática das
trincheiras criou espaços humanos devastados, almas sem rei nem lei: perdidas,
se não afirmassem que, apesar de tudo, têm razão. Lodewijk quer ter razão, a
todo custo, mesmo ao preço de dar razão a todos os outros ao mesmo tempo, de
modo que, no fundo, ninguém tem razão. Está tudo perdido.
Mas quanto à extensão desse “tudo”
divergem as opiniões. No início, todos se sentiam ofendidos. Depois, alguns
críticos mais benevolentes pretenderam “desculpar” o autor, analisando-lhe a
psicologia: Hermans seria representante típico da mocidade de hoje, complexo de
angústias e pretensões igualmente excessivas. Mas o “caso Hermans” não é de
ordem psicológica. Lembra uma frase de Henry Adams, burguês de quatro costados,
que estava indignado contra o revisionismo de Eduard Bermstein: “Se os
marxistas desistem da esperança revolucionária, qual é a fé que ficara ao
Ocidente?” Quis o americano, que não era nada socialista, que pelo menos “os
outros” tivessem razão. Mas depois das experiências de 1918 e 1945, da “revolução
que não houve”, W.F. Hermans parece ter razão, afirmando que a fé de Henriette
Roland Holst está perdida.
Diário Carioca, 28 de junho de 1953