quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Henriette Roland Holst e W.F. Hermans - por O.M. Carpeaux

A fé perdida
Otto Maria Carpeaux

Encontrei pessoas muito cultas, apreciadora da grande pintura holandesa, sabendo também que esse pequeno país é o berço da filologia moderna, da ciência comparada das religiões, de grandes descobertas nos setores de física e biologia – mas duvidam da existência de uma literatura holandesa. A pouco divulgação da língua serve de desculpa a quem ignora os Vondel e Bredero e Dullaart, os Multatuli e Perk, os Kloos e Van Schendel, nomes apenas, mas dos maiores nomes da literatura universal de que a holandesa, nascida no “carrefour” das civilizações francesa, alemã e inglesa, sempre foi e ainda é um microcosmo. Também ela é barômetro para medir certas pressões e tensões. O crítico literário sempre deveria acompanhá-la. Dois acontecimentos holandeses recentes sirvam de exemplo.
O primeiro desse acontecimentos foi a morte da maior poetisa de língua holandesa, Henriette Roland Holst. Morreu aos 83 anos de idade, sem ter recebido o Prêmio Nobel, provavelmente por preconceitos ideológicos. No entanto, a Holanda, país do calvinismo mais ortodoxo e de uma minoria católica muito zelosa, quase agressiva, lamentou unanimente a morte da poetisa socialista.
A religião é, na raiz, tudo na Holanda. Apenas são diferentes os credos. Entre os intelectuais de 1880, quando Henriette Roland Holst entrou na vida literária, o credo dominante era o da beleza: parnasianas que ou (pré-simbolistas) substituam o ideal de perfeição moral dos antepassados pelo da perfeição estática. Sonetos e tercetos são as primeiras poesias de Henriette Roland Holst. Mas não foi acaso a escolha do metro de Dante. A vida moderna parecia feia aos esteticistas da época; à poetisa parecia um inferno, que descreveu num livro sobre “As relações entre o capital e o trabalho na Holanda”. Como Dante, que ela admirava muito, quis tomar partido para dizer o que convinha dizer à cidade. Vinte anos mais tarde, a sonetista escreverá um tratado sobre “A ação revolucionárias das massas”. Em 1918, o volume de versos “Fronteiras abolidas’ saudará a revolução na Rússia, apostrofada como “país do amor” Enfim, a biógrafa de Rousseau, Tolstói, Rosa Luxemburg e (sua última obra) Romain Rolland, separou-se do partido comunista, gravemente decepcionada. A autora dos grandes hinos “Aos quebrados” e “Reza ao Socialismo” tinha reconhecido os motivos puramente humanitários (e religiosos) do seu radicalismo político e social. Nunca renegou, porém, esse seu socialismo humanista, fé de sua vida. Nessa fé, que ainda é a de tantos dos melhores europeus, morreu Henriette Roland Holst.
No momento de sua morte, que foi motivo de luto nacional, rebentou o escândalo da revista “Podium”, órgão de vanguardistas surrealistas, neonaturalistas e outros rebeldes: denunciaram-se tentativas das autoridades de sufocar, financiariamente, a revista, porque tinha publicado capítulos do romance “Eu tenho sempre razão”, de W.F. Hermans, que foi líder literário da Resistência holandesa. Chegaram a processar, por blasfêmia, o autor dessa obra, uma das mais significativas da literatura europeia de hoje. O personagem principal, Lodewijk Stegman, sempre foi rebelde: contra seus pais e contra o país, contra seus professores e contra a religião. A ocupação alemã, interrompendo-lhe os estudos, serviu-lhe para entregar-se à vida boêmia. Da guerra na Indonésia desertou, preferindo ao serviço militar os negócios do mercado negro e os amores fáceis, embora dolorosos. Seu supremo egocentrismo tampouco lhe permitiu continuar as esboçadas atividades revolucionárias. O que Lodewijk quer é simples e difícil ao mesmo tempo: quer sempre ter razão, contra todos os outros. E é isto o que não perdoaram ao seu autor, W.F. Hermans.
O romance é superior à maior parte das obras existencialistas, hoje tão famosas. Hermans não é, aliás, adepto da filosofia de Sartre nem de filosofia alguma. Descreve, magistralmente, um caso psicológico: a transformação da Resistência em ressentimento. É definitiva a frase pela qual Lodewijk pretende justificar sua posição fora de todos os partidos políticos: “Quem insulta o próximo, chamando-lhe de fascista ou chamando-lhe comunista, sempre tem razão.” Concluíram os críticos que o próprio Hermans é niilista. Mas antes merece ser chamado de geógrafo que descobriu país novo, espécie de “terra de ninguém”. Na primeira guerra mundial, a tática das trincheiras criou espaços humanos devastados, almas sem rei nem lei: perdidas, se não afirmassem que, apesar de tudo, têm razão. Lodewijk quer ter razão, a todo custo, mesmo ao preço de dar razão a todos os outros ao mesmo tempo, de modo que, no fundo, ninguém tem razão. Está tudo perdido.
Mas quanto à extensão desse “tudo” divergem as opiniões. No início, todos se sentiam ofendidos. Depois, alguns críticos mais benevolentes pretenderam “desculpar” o autor, analisando-lhe a psicologia: Hermans seria representante típico da mocidade de hoje, complexo de angústias e pretensões igualmente excessivas. Mas o “caso Hermans” não é de ordem psicológica. Lembra uma frase de Henry Adams, burguês de quatro costados, que estava indignado contra o revisionismo de Eduard Bermstein: “Se os marxistas desistem da esperança revolucionária, qual é a fé que ficara ao Ocidente?” Quis o americano, que não era nada socialista, que pelo menos “os outros” tivessem razão. Mas depois das experiências de 1918 e 1945, da “revolução que não houve”, W.F. Hermans parece ter razão, afirmando que a fé de Henriette Roland Holst está perdida.


Diário Carioca, 28 de junho de 1953

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