Seu barco saiu à tempestade. Depois de 32 anos de vida
transtornada, Paul Van Ostaijen naufragou em 18 de março de 1928 em um sanatório
de Miavoye-Anthée, nas Ardenas belgas, vítima da então incurável e muito
literária tuberculose.
Ao longo de sua curta
vida Paul Van Ostaijen, seguramente o maior poeta de língua holandesa (ou, mais
exatamente, língua neerlandesa) do século XX, praticou uma variedade de estilos
poéticos que revolucionou a poesia de Flandres e da Holanda e que certamente
teria influenciado a poesia internacional se sua língua materna possuísse uma
irradiação demográfica mais importante. O que acontece com Van Ostaijen acontece
também a outros gigantes literários como Fernando Pessoa e Machado de Assis,
ainda não inteiramente reconhecidos como escritores do primeiro time da
literatura universal por terem escrito em uma língua “clandestina”, é o
português. (A ironia da história: é justamente na Holanda através do trabalho
do tradutor-escritor August Willemsem, que Machado de Assis começa a ter suas
primeiras traduções à altura do original).
Paul Van Ostaijen
nasceu em 1896, no porto belga de Antuérpia. Seu pai, pequeno empresário, era
de origem holandesa. Sua mãe provinha do norte da Bélgica. A vida do pequeno
Paul transcorreu sem maiores acontecimentos, o menino obtendo resultados
escolares medíocres até que se afasta da escola, em 1913, para começar a
trabalhar como funcionário na prefeitura de Antuérpia. Nesse momento, Van
Ostaijen  já escreve e se engaja luta de
emancipação do povo flamengo contra a opressão de uma burguesia, uma
aristocracia e. um clero de Flandres que tinha optado pela língua francesa,
renegando a cultura flamenga.
Os primeiros escritos
de Van Ostaijen são poemas marcados por um romantismo juvenil, dentro dos
padrões tradicionais. Seu primeiro artigo publicado, “Arte de Agora”, revela
sua paixão pelas artes plásticas - paixão que persistirá durante toda sua
existência. Quase todos os seus melhores amigos são pintores e o elemento
pictórico será essencial em livros de poemas como As Festas de Angústia e Dor
(De Feesten Van Angst en Píjn). Nos últimos anos de vida ele fará da venda de
obras de arte a sua fonte (ainda que precária) de sustento.
Quando se desencadeia
a 1ª Guerra Mundial, Paul Van Ostaijen se encontra em Antuérpia, cidade-chave no
conflito, já que está rodeada por fortificação. Depois de um intenso
bombardeio, a cidade cai finalmente em poder dos alemães. As vivências do poeta
durante os enfrentamentos são descritas em seu poema longo “Cidade Ameaçada”
(“Bedreigde Stad”).
Em setembro de 1917,
sob a ocupação alemã, um acontecimento, até certo ponto banal, será
determinante para o curso posterior da vida de Van Ostaijen. Durante urna
cerimônia religiosa, o poeta vaia o cardeal Mercier, conhecido por suas
opiniões abertamente antiflamengas. Van Ostaijen é preso e posto em liberdade
quase em seguida, mas os diferentes processos que se seguiram aumentarão a pena
inicial de três meses de prisão para onze meses, razão pela qual o poeta
resolve fugir, um ano depois dos fatos, para a Alemanha, no momento mesmo em
que as tropas aliadas a avançam sobre a Antuérpia.
Durante a ocupação
alemã, parte dos flamingantes (partidários da “causa flamenga”) se havia aliado
aos alemães pensando que, assim, poderia conseguir quebrar a dominação
francófona. Mesmo que Van Ostaijen nunca tenha simpatizado com o ocupante
alemão, preferiu não correr nenhum risco e não se engajou em nenhuma ação que
pudesse levá-lo a uma nova condenação. Em novembro de 1918 Van Ostaijen
instalou-se em Berlim, onde permaneceu mais de três anos, junto com sua amada
Emmeke em condições próximas da miséria.
 O relacionamento de
Van Ostaijen com Emmeke Clément, com quem manteve relações amorosas e de amizade
até o fim da vida, não foi ainda devidamente esclarecido. Van Ostaijen
conheceu-a no outono de 1917 quando os alemães ainda ocupavam Antuérpia. Emmeke
era três anos mais velha que o poeta e saia de um casamento de quatro anos.
Paul Van Ostaijen permaneceria sempre ligado a ela, mesmo depois que Emmeke -
com o consentimento do poeta - se casou com um alemão. Poeta, que
deliberadamente se separou de sua amada, o destino de Van Ostayen é análogo ao
de Kierkegaard e Kafka, escritores talvez tão impenetráveis quanto ele.
Durante sua estada em
Berlim, Van Ostaijen continuou seu trabalho de escritor e entrou em contato com
os dadaístas, com quem finalmente acabou na cadeia por seus “excessos” no
comportamento.
Nessa época Paul Van Ostaijen publica vários artigos sobre
artes plásticas, literatura e sobre a luta de emancipação do povo flamengo.
Em 1920 publica De
Festen Van Angst an Pijn (As Festas de Angústia e Dor) e Bezette Stad (Cidade
Ocupada). Por seu niilismo e seu desespero, estes dois livros se demarcam muito
claramente de suas obras anteriores Music-Hall e Het Sienjaal, onde transparece
sua fé expressionista em um mundo renovado. Não surpreende que em Het Sienjaal
se possa rastrear alguma influência de Whitman. Ele próprio admite também a
influência de Else Lasker-Shuler. Em As Festas de Angústia e Dor e em Cidade Ocupada
é visível a influência da poesia de Apollinaire, o que, aliás, o próprio poeta
admite. Estes dois últimos livros - o primeiro escrito a mão e em várias cores
- se destacam pela ruptura radical com a tradição poética - eles pertencem à
linhagem do Mallarmé do “Coup des Dés” os poemas são palavras soltas, gritos
atormentados sublinhados por uma tipografia sofisticadíssima próxima das
experiências dadaístas e surrealistas. No entanto, a configuração dos poemas de
Van Ostayen é original e guarda independência em relação aos novos padrões da
vanguarda européia.
Não suportando mais
sua vida em Berlim, Van Ostaijen volta a Antuérpia, onde leva uma vida
clandestina, à espera de uma anistia. Anistia que chega finalmente e o poeta
passa a ganhar a vida como “marchand”. Desse momento já não publicará nenhum
livro de poesia. Em meio de 1926, Van Ostayen descobre haver contraído
tuberculose, de que vem a falecer em setembro do ano seguinte.
A influência de Van
Ostaijen nas letras flamengas e holandesas tem sido enorme, a tal ponto que um
número considerável de poetas em Flandres e na Holanda se debateu em vão para
libertar-se de sua presença esmagadora.
Em pouco mais dez anos de atividade poética, Van Ostaijen
(que viveu apenas 32 anos) revolucionou a poesia de língua neerlandesa e
introduziu nela novos procedimentos, ainda hoje dominantes.
Philippe Humblé e Walter Costa, 
(matéria publicada em jan/1985 no suplemento
da Folha de São Paulo intitulada Folhetim.)
POEMAS QUE ACOMPANHAM A MATÉRIA
VERSO 6
Eu não posso colecionar selos 
Eu não posso colecionar fotos de mulheres 
Eu não posso colecionar namoros 
nem sabedoria 
eu já não posso nada mais 
          eu já não
posso nada mais 
Porque não apago a luz 
          e não vou
pra cama 
Eu quero provar 
          estar nú 
          pelado quem
sabe sim púrpura gelada 
                                               
e palidez 
Não é assim o próprio princípio principiante 
Eu não quero saber nada 
eu não quero perguntar 
          porque 
          eu não me
tornei um colecionador de selos 
Eu começarei por dar meu fracasso 
Eu começarei por dar minha falência 
Eu me darei um pobre despedaço de terra 
                             
uma terra pisoteada 
                             
uma terra de urzes 
                             
uma cidade ocupada 
Eu quero estar nu 
     e começar
(tradução de Philippe Humblé e Walter Costa)
MELOPÉIA
Sob o luar escorre o longo rio 
Sobre o longo rio escorre cansada a lua 
Sob o luar no longo rio escorre a canoa pro mar
Pela canalta 
Pelo pradalto 
escorre com a lua que escorre a canoa pro mar 
Assim são parceiros pro mar a canoa a lua e o homem 
Por que escorrem a lua e o homem ambos mansos pro mar
(tradução de Philippe Humblé e Walter Costa)
PAISAGEM  DE OUTONO
Na neblina é devagar um boi com um carro de boi 
andando junto à neblina nunca perde o passo 
o boi do carro de boi 
Fora da neblina dentro da neblina com o carro tropeçando 
firme não adormece o carroceiro 
num sono sem trilhas
Atrás do carro bóia luz de lanterna 
uma mínima cunha de clareza na negrofunda rua
(tradução de Philippe Humblé e Walter Costa)
O VELHO
Um velho na rua 
sua pequena história para a velha 
não é nada soa como uma tragédia rarefeita 
sua voz é branca 
parece uma faca tão longamente afiada 
até o aço ficar magro 
como um objeto fora dele se pendura esta voz 
sobre o preto comprido casado 
O velho magro em seu casaco preto 
parece uma planta preta 
Vê você isto joga a angústia por sua boca 
o primeiro saborear de uma narcose
(tradução de Philippe Humblé e Walter Costa)
NOITE
Ah, minha alma é só som 
Nesta hora de só cor; 
Sons que se elevam soltos 
Num sonso jardim de odor.
(tradução de Philippe Humblé e Walter Costa)
POEMA
E cada nova cidade 
    flor que murcha 
              outono
amarelece a flor
              serão
todas as cidades assim 
              serão
todas assim 
              assim
são todas
Em todo lugar 
em todo lugar e em nenhum 
             todo
lugar é nenhum 
em todo lugar 
             os mesmos
bombons tristes em copos 
             bebida
fica pérola não há sede 
uma canção está em todo lugar             de amor e adultério 
             serão todas
as cidades assim 
             serão
todas assim 
             assim são
todas
(tradução de Philippe Humblé e Walter Costa)
BERCEUSE PRESQUE NÈGRE
Não participa o chipanzé
Por que não participa o chipanzé 
                             
O chipanzé 
                                           tem 
                               enjôo do mar 
Tem tanta água no mar 
imagina o chipanzé
(tradução de Philippe Humblé e Walter Costa)
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