terça-feira, 29 de abril de 2014

Camões e Slauerhoff - O. M. Carpeaux

Camões e Slauerhoff
Por Otto Maria Carpeaux

Apesar das muitas traduções dos “Lusíadas” para todas as línguas, a fama universal do maior poeta português baseia-se mais no interesse pela sua vida aventurosa e desgraçada. Mais numerosos que as traduções são, em todas as literaturas, os poemas, tragédias, romances e contos em que Camões aparece como personagem principal. Não adiantaria dar uma relação de título e nomes; seria exibição de erudição inútil. Pois entre aquelas obras todas não há, parece, nenhuma obra-prima. Nenhum dos autores revela compreensão profunda daquele grande poeta e grande caráter. Para todos eles, antes é um nobre e infeliz aventureiro; imagem nada superior àquela de historiógrafo oficial, em versos, do império colonial português, que os oradores de sobremesa costumam festejar, nesta parte do mundo. A não ser...
Não sei se alguém falou, no Brasil ou em Portugal, da obra que escreveu sobre Camões um poeta holandês contemporâneo nosso. Se não, o assunto merece o comentário.
Jan Slauerhoff nasceu em 1898 e morreu em 1936. Foi importante poeta lírico e autor de importantes obras em prosa. Como médico de bordo passou a curta vida viajando pelos sete mares, especialmente para a América do Sul e para o Extremo Oriente. Foi homem dedicado à aventura: um romântico. A realidade o fez sofrer. Encontrando-a, numa mulher, num país exótico, em companheiros e amigos, sempre começou exultando e exaltando a realidade; e acabou desesperando dela e desesperado. Generalizando essa experiência, profetizando apocalipticamente o fim do mundo; e os anos de 1930, pouco depois de sua morte, pareciam dar-lhe razão. Sua profecia tinha bases existenciais: o mundo e ele próprio pareciam-lhe “jogados para a existência”, termo da filosofia de Heidegger, que o poeta tinha estudado. A “inquietação mortal do seu coração” (para falar com Kierkegaard) incompatibilizou-o com a ordem do mundo burguês, ainda, aparentemente, intacto no seu tempo. A viagem para continentes remotos não era, para ele, uma fuga, uma evasão; antes procura de uma ilha utópica na qual coexistiriam a plena e desenfreada liberdade do indivíduo e a permanência das coisas sem a qual não lhe parecia possível a arte. Um ideal de homem da Renascença, Slauerhoff acreditava encontrar esse ideal, com muita licença poética, na China. E na China encontrou a sombra de Camões.
O romance “O reino proibido” (1932) foi escrito naquela mesma célebre gruta, em Macau, na qual Camões escrevera os “Lusíadas”. A obra é muito complexa, capaz de desconsertar o leitor desprevenido. Por outro lado, não é provável que venha a ser, tão cedo, traduzida. E, sendo pouco divulgada no mundo a língua holandesa e desconhecendo-se os formidáveis tesouros de sua literatura, talvez não seja inútil um resumo comentado de “O reino proibido”.
A obra começa com espécie de diário no qual Camões fala de sua vida na corte portuguesa e de sua paixão por Diana, que foi motivo de seu desterro. Mas admite que a desgraça foi fatal e inevitável; suas atitudes, incompatíveis com as conveniências da sociedade, teriam causado, de qualquer maneira, o exílio.
Depois, em Macau: o governador da cidade, Campos, luta desesperadamente contra seus inimigos, sendo apoiado apenas por um dos oficiais que espera conquistar desse modo, a filha do governador; mas dona Pilar não quer ouvir desse pretendente. Continua o diário de Camões: o exílio, o naufrágio. Numa ilha deserta, perto da costa chinesa, o poeta encontra Pilar, que fugiu das pretensões daquela oficial. Nessa moça, Camões acredita ver uma encarnação ou reencarnação de Diana; motivo que é de importância, na obra. Enfim, o poeta chega a Macau, onde fica preso... Nesta altura interrompe-se bruscamente a narração. Começa o diário de um telegrafista de bordo, dos nossos dias, viajando para a China. Mas foi só um estranho episódio, pois logo continua o romance de Camões, que é escolhido, pelo governador, para acompanhar uma embaixada para Pequim. A caravana perde-se no deserto. Abandonado por todos, o poeta fica só, “junto dum seco, fero e estéril monte” – e essa citação (Canção X, 1), assim como a confusão entre Diana e Pilar, também revelará depois sentido profundo.
De repente, a narração muda novamente de tempo. Aquele telegrafista, desembarcando na China, sente-se em casa. É o fenômeno do “dejà vu” que experimentamos nos sonhos: vendo uma paisagem desconhecida como se já tivéssemos conhecido. Em Macau, o telegrafista assiste a tumultos que lembram a história do século XVI. Retira-se para o deserto. Descansa, “junto dum seco, ferro, e estéril monte” – a identificação de duas pessoas, que já se realizara no caso de Diana e Pilar, repete-se; o homem moderno é Camões. Macau não é a antiga nem a de hoje: é a porta de um reino, fora da civilização europeia, onde o homem é livre e onde, no entanto, tudo é permanente e nada muda através dos séculos. A utopia está realizada. Camões não perdeu inutilmente a vida. Sua luta continua.
Esse livro estranho não deixou de desconsertar a crítica holandesa, que acreditava encontrar na obra a doutrina asiática da reencarnação das almas. Num pequeno escrito, “A última encarnação de Camões”, defendeu-se Slauerhoff contra essa interpretação. Seu objetivo apenas teria sido o de demonstrar a possibilidade de “empatia” intuitiva, de penetrar poeticamente na alma de um grande homem do passado. No fundo, o poeta holandês nega o tempo. Sua China é eterna. E podemos acrescentar: sua China fica em toda parte e em parte nenhuma: na alma de todos os poetas e na sua própria.
Assunto dos mais interessantes seria uma comparação entre a China fantástica de Slauerhoff e aquela outra China fantástica na qual se passam várias novelas e parábolas de Kafka. Mas isto é para outra vez. Agora basta focalizar duas semelhanças: as “Chinas” dos dois escritores contemporâneos são vistas através do sonho e de uma sutil ironia. Realmente, Slauerhoff, homem trágico, nunca deixou de ironizar o mundo e a si próprio. Tinha motivos para isto, e, sobretudo em “O reino proibido”. Pois apresenta-se como novo Camões: mas um Camões sem fé cristã nem fé nacional. Não é preciso dizer que o romance é infinitamente inferior aos “Lusíadas”. Mas não apenas em valor literário. Sobretudo falta ao panorama das aventuras no “reino proibido” o fundo histórico: o império colonial português e o céu cristão.
Mas esse defeito tem, como reversos, uma virtude. Despindo Camões de todos os elementos ideológicos, Slauerhoff descobriu no poeta aquilo que nunca poderia descobrir a historiografia literária oficial dos portugueses nem o romantismo dos estrangeiros: a personalidade de um homem indômito da Renascença. Slauerhoff contribuiu para a melhor compreensão de um aspecto do poeta; e para focalizar a atualidade permanente.  

Artigo originalmente publicado no Correio da Manhã em 8 de outubro de 1955.  

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Prosadores da Holanda - Francisco Albal

[nota do editor do Jornal do Brasil]
No intuito de tornar mais conhecida a literatura da Holanda, tão desenvolvida como nas maiores capitais intelectuais do mundo, publicamos, hoje, um trabalho do crítico Albal. Embora feito de maneira esquemática, esse artigo nos dá uma ideia da situação literária holandesa.

Prosadores da Holanda                                                    
por Francisco Albal

A prosa holandesa necessita uma reação mais clara contra a estagnação, uma dessas “reações” indispensáveis a toda evolução cultural. Sua situação de continuidade é confirmada pelo fato de não ter surgido, ainda, um núcleo renascente, um corpo literário dotado de personalidade própria, como o Movimento de 1880, a Geração de 1920 e a última Escola de Amsterdam.
Desses três últimos condensadores da literatura holandesa, nos últimos três quartos de século, nenhum foi tão homogêneo quanto o primeiro, com seu órgão “O Novo Guia”, seu mentor – o poeta e crítico Albert Verwey (1865-1937), que ainda depois haveria de continuar pontificando na revista “O Movimento” até 1919 – seu grande poema de consagração “Maio”, de um dos maiores poetas holandeses de todos os tempos, Herman Gorter e que, além disso, contou com duas figuras de grande valor e indiscutível complexidade: Frederik van Eeden e Jacobus van Looy.
A esse “Movimento de 80”, que ultrapassou o âmbito da literatura para se transformar num renascimento global da vida cultural holandesa, seguiu-se a chamada “Geração de 1920” ou “Geração Entre as Guerras”, que se dividiu em dois grupos, que tomaram rumos diferentes: o capitaneado por Nico van Suchtelen, autor de “Quia Absurdum”, e Arthur van Schendel, o magnífico prosador de “Um vagabundo enamorado”, e o grupo dos reformadores socialistas, dos otimistas iluminados pela visão próxima de um mundo melhor, do qual faz parte também o gigante Herman Gorter e do qual é o porta-voz mais entusiasta e luminoso, a poetisa Henriette Roland Holst-van der Schalk (1869-1952).
E, assim como o movimento de 80 pesou enormemente sobre a geração de 1920, esta continuou influenciando – na prosa de hoje quase totalmente – os Boutens, Bloem, Van Eyck, Geerten-Gossaert, Greshoff, De Haan, Aart van der Leuw e Victor E. van Vriesland
Quanto à chamada Escola de Amsterdam, é visível a sua falta de homoneidade. Seus membros não têm de comum senão a capital que lhes dá o nome e uma certa preocupação pela transitoriedade da existência, pela constante ameaça da morte, contra a qual cada um se defende de acordo com seu próprio caráter.
Presentemente, as letras holandesas ainda mostram mais acentuada dispersão, maior descentralização. A literatura parece se refugiar nos focos provincianos, como que fugindo do terrível monopólio das capitais. As contingências geográficas, contudo, exercem influencia diminuta na Holanda atual. O mais importante é o fato da prosa holandesa ter muitos seguidores e poucos valores. E que estes valores não sejam, exatamente, de hoje. Em nossas coordenadas, portanto, o movimento da prosa na Holanda descreve uma curva de grande dispersão, quer dizer ampla na base da altura reduzida, como uma colina de rampa muito suave. Será uma das razões desse fato a que se refere Annie Romein Verschoon, em seu belo livrinho “Pantano e Céu”, quando fala, sem apurar a culpa, do fenômeno de após guerra, que consiste no grande numero de jornais e revistas em que aparecem trabalhos curtos e superficiais de jovens escritores? Um excesso de jornalismo pode ser nefasto para a qualidade da prosa, porque o jornalista é mais levado a fazer concessões ao publico e, além disso, trabalha apressadamente.
Feitas essas explicações, examinemos a galeria dos prosadores atuais, sem pretender, em absoluto, sermos completos.
Deixando de lado os poetas que têm escritos prosa em conferencias e palestras, e os críticos e eruditos, como o Professor J.L.Walch e o Professor Jan Romein, este último um espírito enciclopédico, discípulo do grande Huizinga, citaremos mais conhecidos e de mais valor.
Continuadores da obra de Multatuli: Madelon Szekeley-Lulofz, autora dos primeiros romances genuinamente coloniais em holandês: “Borracha”, “Coolie”, e “Outro Mundo”; Beo Vuik, contista de “Cem Ilhas” e de “A última casa do mundo”; a javanesa Soewarsih Djojopoespito, com seu “Foro de jugo”; Du Perron, holandês de ascendência francesa e nascido em Java, autor de muitas obras, destacando-se “O País Natal”, e Albert Heman, holandês do Suriname, de grande fecundidade literária, infatigável viajante, autor de obras celebradas, como “Sul-Sudoeste”, “A Plantação Muda”, “Coração sem Terra”, “Por que não?”, “O Ditador Louco”, “A Esfinge da Espanha”, e Cola Debrot, com “Minha irmã, a negra”.
Romancistas humoristas: Henriette van Eyck, autora de “Pequeno Desfile”, “Gabriel, história do homenzinho magro” e, mais recentemente, “De casa em casa”; Godfried Bomans, delicioso contista, de humor suave, amante das parábolas.
De ambiente cosmopolita: Van Schendel, um dos grandes coloristas da prosa holandesa; A. den Doolard, autor do conhecidíssimo “Orient Express” e de inúmeros outros romances mais ou menos exóticos; Jan de Hartog, escritor mais europeu que holandês, autor, entre outras coisas, de “Gloria da Holanda”.
Regionalistas: Antoon Coolen, de Brabante, que soube pintar, com riqueza, a vida do católico do sul da Holanda, e Herman de Man, seu paralelo, na vida do norte da Holanda, calvinista.
E terminemos com os mais inquietos e profundos: Jef Last, efervescente, turbulento e apaixonado; Maurits Dekker, mais complexo, trágico, irônico e profundo; H. M. van Randwijk, idealista, generoso e vibrante escritor de vanguarda socialista cristã; Theun de Vries, notável narrador, de força incontrolável; F. Bordewijk, romancista de álgida fantasia, que antecipou A. Huxley e também escreveu uma obra humana e transcendental: “Karakter”. E, por fim, o mago das letras holandesas, S. Vestdijk, médico, psicólogo, poeta, crítico e romancista de extraordinário talento e fecundidade.

Artigo originalmente publicado no suplemento dominical do Jornal do Brasil em 1/7/1956   
                                                                                      

domingo, 20 de abril de 2014

Aspectos da moderna cultura holandesa (I) - C. A. Nascimento

Aspectos da moderna cultura holandesa (I)
por Carlos A. Nascimento

Apresentar um estudo da moderna literatura holandesa ao público brasileiro é uma tarefa assaz complexa dada a escassa divulgação entre nós dos livros daquele país. Porém, não é a falta de valores o fator que determina essa escassez. A principal razão desse isolacionismo está no fato de ser o idioma holandês difícil de ser entendido e não menos de ser traduzido.
O movimento literário na Holanda é bastante expressivo, sendo um dos países do mundo que possui maior número de livrarias. Segundo estatísticas recentemente publicadas, há nos Países Baixos nada menos que 1.720 casas que exploram o comércio de livros, o que representa uma livraria para cada 7 mil habitantes. Vale frisar aqui que a metade dos livros vendidos são escritos em inglês, o que demonstra o alto nível intelectual da população.
A tendência predominante da literatura na Holanda é a desilusão, porém uma desilusão construtiva, que revela um idealismo invulgar, cujo objetivo é um futuro melhor. A insatisfação é a raiz da sua literatura.
Dentre os poetas da nova geração holandesa, Adriaan Roland Holst é sem dúvida um dos mais populares. Suas obras se caracterizam por um “isolamento de beatitude”. Holst se dedica ao estudo da mitologia céltica e das culturas passadas. J. C. Bloem é outro poeta melancólico. Suas produções se revestem de um pessimismo contagiante, onde o senso de utilidade de todas as coisas é seu dote mais marcante. Até o título da última peça de Bloem revela esse temperamento: “De nederlaag” (A derrota). Martinus Nijhoff (falecido em 1953) era considerado a figura central dessa geração. Nijhoff exerceu certa influência sobre a poesia moderna, sendo um dos primeiros poetas realistas a introduzir em seus poemas a realidade de todos os dias, revelando uma virtuosidade incomparável.
Entre os autores dramáticos surgidos antes da segunda guerra mundial, podemos destacar Ferdinand Bordewijk, que além de escritor é também jurista. O tema principal de suas obras é a procura de um equilíbrio entre os contrastes do medo caótico e da disciplina severa. Sua contribuição para as letras holandesas inclui várias obras, entre as quais “Karakter” (Caráter), traduzida em vários idiomas.
Da escola “experimental” podemos citar o jovem escritor Hans Andreus como um poeta de real talento. Sua última coletânea de poesias revela sua tendência para o abstracionismo. “A arte da pintura” é o titulo que Andreus deu a um de seus recentes livros, cujo subtítulo é “Nada além de cores”.
O “existencialismo” exerce uma forte influência na literatura holandesa. Gerrit Kouwenaar é o representante mais destacado da escola de Sartre. Seu último romance é “Ik was geen soldaat” (Eu não era um soldado). Kouwenaar conta a vida angustiosa de um moço holandês preso de um profundo sentimento de culpa por haver revelado, sob tortura, aos nazistas, o paradeiro de um companheiro da Resistência, cujo epílogo dá-se em Paris, onde o personagem se entrega à mais completa degradação.
A despeito da posição e prestígio que ocupa o calvinismo, com sua tendência conservadora, o freudismo vem ganhando terreno entre os literatos. Essa corrente conta com a pena de Simon Vestdijk, cuja produção de meia centena de obras vem assombrando os meios literários da Holanda por sua fecundidade a par de valor incontestável. Vestdijk, que é médico de certo prestigio na profissão, emprega com habilidade as teorias de Freud sobre a história natural do homem.
Os livros holandeses não têm representado uma contribuição nem sequer pequena para as antologias internacionais, mas têm inegavelmente representado uma grande contribuição para a análise final da natureza humana.
Seu estudo sobre os sofrimentos e os conflitos do indivíduo, sua literatura psicológica, mais do que de tendência sociais, representa, em síntese, antes o retrato do homem do que o conflito de massas.

     
Artigo originalmente publicado no suplemento dominical do Jornal do Brasil em 3 de março de 1957.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Vestdijk - Otto Maria Carpeaux

VESTDIJK
Otto Maria Carpeaux

Num artigo da revista norte-americana “Atlantic Montly”, Adrian Veen chamou a literatura holandesa e flamenga (as duas línguas são idênticas), de “secreta”, porque ninguém a conhece; citou, entre outros, o nome de Simon Vestdijk, acrescentando: “Se um John Lehmann o tivesse editado em inglês, o nome desse batavo seria hoje tão famoso como o de Joyce.” É um exagero. No entanto, vale a pena familiarizar o público brasileiro com este e alguns outros desconhecidos “dantes desconhecidos”. O desconhecimento da literatura de um pequeno país, de língua pouco divulgada, não é argumento. Teimando em ignorá-la, teríamos o direito de lamentar o relativo desconhecimento da literatura brasileira na Europa?
E o país de Erasmo também é, em nosso tempo, o país de Huizinga. O país de Rembrandt e Vermeer van Delft também é o país de Van Gogh. Hoje, todo mundo conhece Mondriaan e o movimento “De Stijl”, e ao lado dessa grande arte plástica não existiria grande literatura?
Num excelente artigo sobre o poeta flamengo Van Ostaijen, meu amigo José Roberto Teixeira Leite teve a gentileza de lembrar de um artigo meu sobre o grande romancista Multatuli, como mais exemplo de um estudo de literatura holandesa na imprensa brasileira. Evidentemente, escaparam-lhe os artigos em quais tento chamar a atenção para alguns escritores modernos: o romancista trágico Van Schendel; o poeta Slauerhoff, autor de um romance dos mais estranhos, sobre Camões; o iconoclasta em estilo clássico Marnix Gijsen; o feroz existencialista W. F. Hermans. Quem mais? Com os poetas há as conhecidas dificuldades de tradução. Mas mereciam estudo os prosadores flamengos Elsschot e Teirlinck; o escritor proletário Louis Boon; os interessantíssimos críticos literários Marsman, Ter Braak, Du Perron; e crítico também é amigo deles, aquele Vestdijk, sobre o qual devo, há muito, o estudo prometido ao meu amigo Franklin de Oliveira.
Simon Vestdijk (pronúncia: Vesdeik) nasceu em uma casa na cidade de Harlingen, ninho de pequenos burgueses ferozmente puritanos. É médico. Ficou calado até a idade de 24 anos. Só então começou a escrever. E desde então produziu mais de 60 volumes, de todos os gêneros literários e sobre tudo o que há e não há entre o céu e a terra. Sabe tudo e sabe fazer tudo. Seu amigo e crítico Ter Braak chamou-o de “duivelskunstenaar” (artista diabólico). Sua produção é imensa; e continua. É poeta notável, de cunho fortemente intelectualístico. E grande contista. É grande crítico. Seu estudo sobre “Rilke como poeta barroco” (1903) é um dos trabalhos mais importantes, não só sobre Rilke, mas sobre o Barroco literário. Este ensaio está agora incluído no volume “Lier en lancert” (“Lira e escalpelo”), em que também se destacam os estudos sobre Emily Dickinson, Joyce, Valéry, George, Kafka, os sonetos de Nerval. Há mais outros volumes: “De poolsche ruiter”; “Zuiverende Kroniek”; “O problema da culpa em Dostoiévski”. São análises agudíssimas, tentativas de “destruir o encanto dos poetas para revelar o encanto da poesia”. Esse Vestdijk também é eminente crítico de música; agora mesmo anuncia um livro sobre Mahler. Mas em primeira linha ocupa-nos aqui o romancista.
Atenção: a produção imensa de Vestdijk é desigual (e o pouco que foi até agora traduzido, especialmente para o alemão, é inferior ao nível da obra total). É justamente essa desigualdade que informa a construção do presente artigo. Vestdijk é, sim, um artista de capacidade diabólica. Mas seria o elogio sem restrições o melhor processo para apresentar esse desconhecido? Prefiro o caminho contrário: as relativas fraquezas do autor, francamente admitidas, atestam-lhe o valor.
“Het Vifjde Zegel”, a única obra de Vestdijk que também os conservadores e os acadêmicos elogiaram, é espécie de biografia romanceada de El Greco. Com erudição imensa, pintou o romancista um panorama completo da Espanha antiga: moldura do destino de um grandíssimo artista que sempre se supera porque sempre duvida de si próprio. É muito superior ao romance “L’enterrement du Comte d’Orgaz”, de Georges Bordonove , que agora mesmo está sendo bastante elogiado na França. Uma tradução de “Vijfde Zegel” (“O quinto sigilo”) seria sucesso internacional. Infelizmente, o êxito dessa obra levou Vestdijk a escrever mais uma dúzia de outros romances históricos que se passam em diversas épocas, dos tempos pré-históricos até o século XIX. A erudição imensa do romancista sempre garante a fidelidade do quadro. Quase sempre está, de qualquer maneira, “engagé” o coração do autor: “Iersche Nachten”, por exemplo, sobre a fome na Irlanda de 1847, é um grande romance social. No entanto: o gênero é falso. A inquietação febril com que Vestdijk percorre as épocas históricas é aliada da insegurança do próprio autor. Forte nos estudos filosóficos, o romancista alega como fundamentalmente dessa (confessada) insegurança e dúvida filosófica quanto ao valor da vida que levou esse ateu e anti-cristão livremente a escrever romances de tema religioso. Em “Os últimos dias de Pilatos”, versifica os ressentimentos eróticos e a falência da mensagem evangélica. Em “O garçom e os vivos”, romance de sabor dostoievskiano, compara a vida humana a uma viagem de ônibus para o ponto final desconhecido. São obras de tensão febril que, por isso mesmo, não convencem. Vestdijk parece-se com seu Greco que, por sua vez, se parece com Cézanne. O extremo nervo calmo do romancista inspira dúvidas quanto às origens de sua luta com o mundo e consigo mesmo. Mas também indica a função de sua inteligência: de escritor: este é seu instrumento para tornar consistentes os conflitos íntimos que se resolvem em sua literatura, que tem, para o escritor, função catártica. Daí sua poligrafia errante. Daí a abundância de 60 volumes em pouco mais de 25 anos. Cada uma das suas obras é um aspecto da sua própria “case history” analítica. Assim como também outros escritores da nossa época, Vestdijk é fortemente influenciado por Freud. Mas é, entre eles, talvez o único que não se serve objetivamente da psicanálise: sua literatura é resultado da sua permanente auto-análise que, como todos os amadores, não acaba nunca. Vestdijk estava destinado a escrever um “roman fleuve”.
Eis sua obra capital, da qual até agora estão publicados cinco volumes. O primeiro “São Sebastião”, trata da meninice de Anton Wachter (que é o alter ego do autor) até os quatro anos de idade. É o primeiro romance da literatura universal que se ocupa com essa fase da vida. É originalíssimo, concebido com termos de uma lógica diferente da nossa, porque a criança aprende palavras ouvidas dos adultos, manejando-as com acepções diferentes e, às vezes, inventadas, como se fossem fórmulas mágicas. O segundo volume é “Surrogaten voor Murk Tuinstra”, Ainda nos ocuparão o terceiro, “Terug tot Ina Damman”, e o quarto, “Menner Vissers Hellevaart”. No ano passado saiu o quinto volume, “De Baker van de Min”, em que Anton Wachter começa a estudar na Universidade.
Como dar idéia dessa obra complexa? Superficialmente vista, é uma série de recordações à maneira de Proust, informada por mentalidades muito parecida com a de Joyce. Mas Vestdijk não dissolve os contornos nem a língua. Pode ser lido como se fosse narrador realístico, observador atentíssimo da vida cotidiana. Apenas a deforma e transfigura. A rotina que todos os homens conhecem torna-se misteriosa. Depois, esse mistério é, novamente, o encanto do desconhecido, assim como nas análises do crítico literário.
Os cinco volumes não foram publicados na mesma ordem em que foram escritos. Às vezes, parece mesmo como se a obra inteira já estivesse escrita. Ninguém decifrará jamais os mistérios dessa cronologia, porque Vestdijk não permite essa invasão de sua intimidade. O primeiro volume publicado em 1934 é o terceiro da série e, talvez, a melhor obra de Vestdijk: “Terug tot Ina Damman” (A volta a Ina Damman). Nesse romance Anton Wachter é um colegial adolescente, precoce e tímido. Já não acredita, como a criança de 4 anos em “São Sebastião”, na força mágica das palavras. A palavra é substituída, agora, pelo encanto de uma garota que ele vê todos os dias, no caminho da escola. Na verdade, essa Ina Damman foi uma pequena braba e teimosa. Wachter/Vestdijk sabe isso agora, ao recordar-se, ao escrever o romance. Mas o amor e a timidez subsistem até hoje, e ainda inspiram as últimas palavras do livro “...ficando frágil, para sempre, aquele que tinha perdido sem que jamais tivesse sido sua”. É uma obra irresistível. Desde os dias de Guido Cavalcanti e Dante e do “dolce stil nuovo” são raros, são raríssimos, os que descobrem uma nova modalidade da poesia erótica. Vestdijk conseguiu. “Terug tot Ina Damman” deveria ocupar na admiração da nossa época o lugar ilegitimamente ocupado por “Lolita”.
Hoje, Wachter/Vestdijk conhece melhor os motivos do encanto permanente de Ina. Embora continuando fiel a ela, libertou-se pelo mesmo processo analítico de desencanto que é instrumento de sua crítica literária. E escreveu logo depois, em 1935, “Else Böhler”, a história de (suas) relações com uma criada alemã, ele já adulto, ela uma Ina adulta e vulgar. Esse romance ainda poderia ter, como epígrafe, o lema do “dolce stil nuovo”: “Amor m’inspira...”. Mas é o amor a uma indigna; e, na segunda parte do romance (estamos em 1935), o falso romantismo em torno de Else é desmascarado como um dos motivos ressentementais da mais abjecta violência nazista.
Ina/Else é a mais bem sucedida criaçãode Vestdijk. A mais complexa é Meneer Visser, em “Meneer Visser’s Hellevaart”: o pequeno burguês que sonha em tornar-se o Robespierre de Lahringen; e consegue transformar em inferno fantástico sua cidade: o que na realidade também sucedeu.
Os romances de Anton Wachter passam-se na pequena cidade de Lahringen, fantasia transparente da pequena Harlingen em que Vestdijk nasceu. Que temos nós outros com esses pequenos burgueses ferozmente puritanos e com esse menino perdido? Mas será que Dublin é mais interessante e mais universal que Harlingen? Ah, podemos repetir: se um John Lehmann o tivesse editado em inglês... O ambiente de Vestdijk não é o vasto mundo da língua inglesa. Mas não é menos digno da nossa atenção, quase eu teria dito: da nossa reverência. Vestdijk pertence a uma “geração de 38” holandesa, juntamente com seus amigos: o poeta e crítico Marsman, que, fugindo da invasão nazista da Holanda, se afogou em 25 de maio de 1940 num mar da Holanda; o crítico Ter Braak, que, ao saber dessa invasão, deu em 5 de maio de 1940 um tiro na cabeça; o crítico e romancista Edgar Du Perron, que, ao saber daquela invasão, sucumbiu no mesmo 5 de maio de 1940 a um colapso cardíaco. Vinte anos depois, não podemos homenagear melhor a memória desses grandes intelectuais sacrificados do que homenageando-lhes o amigo.

Texto originalmente publicado no "Correio da Manhã".