terça-feira, 29 de abril de 2014

Camões e Slauerhoff - O. M. Carpeaux

Camões e Slauerhoff
Por Otto Maria Carpeaux

Apesar das muitas traduções dos “Lusíadas” para todas as línguas, a fama universal do maior poeta português baseia-se mais no interesse pela sua vida aventurosa e desgraçada. Mais numerosos que as traduções são, em todas as literaturas, os poemas, tragédias, romances e contos em que Camões aparece como personagem principal. Não adiantaria dar uma relação de título e nomes; seria exibição de erudição inútil. Pois entre aquelas obras todas não há, parece, nenhuma obra-prima. Nenhum dos autores revela compreensão profunda daquele grande poeta e grande caráter. Para todos eles, antes é um nobre e infeliz aventureiro; imagem nada superior àquela de historiógrafo oficial, em versos, do império colonial português, que os oradores de sobremesa costumam festejar, nesta parte do mundo. A não ser...
Não sei se alguém falou, no Brasil ou em Portugal, da obra que escreveu sobre Camões um poeta holandês contemporâneo nosso. Se não, o assunto merece o comentário.
Jan Slauerhoff nasceu em 1898 e morreu em 1936. Foi importante poeta lírico e autor de importantes obras em prosa. Como médico de bordo passou a curta vida viajando pelos sete mares, especialmente para a América do Sul e para o Extremo Oriente. Foi homem dedicado à aventura: um romântico. A realidade o fez sofrer. Encontrando-a, numa mulher, num país exótico, em companheiros e amigos, sempre começou exultando e exaltando a realidade; e acabou desesperando dela e desesperado. Generalizando essa experiência, profetizando apocalipticamente o fim do mundo; e os anos de 1930, pouco depois de sua morte, pareciam dar-lhe razão. Sua profecia tinha bases existenciais: o mundo e ele próprio pareciam-lhe “jogados para a existência”, termo da filosofia de Heidegger, que o poeta tinha estudado. A “inquietação mortal do seu coração” (para falar com Kierkegaard) incompatibilizou-o com a ordem do mundo burguês, ainda, aparentemente, intacto no seu tempo. A viagem para continentes remotos não era, para ele, uma fuga, uma evasão; antes procura de uma ilha utópica na qual coexistiriam a plena e desenfreada liberdade do indivíduo e a permanência das coisas sem a qual não lhe parecia possível a arte. Um ideal de homem da Renascença, Slauerhoff acreditava encontrar esse ideal, com muita licença poética, na China. E na China encontrou a sombra de Camões.
O romance “O reino proibido” (1932) foi escrito naquela mesma célebre gruta, em Macau, na qual Camões escrevera os “Lusíadas”. A obra é muito complexa, capaz de desconsertar o leitor desprevenido. Por outro lado, não é provável que venha a ser, tão cedo, traduzida. E, sendo pouco divulgada no mundo a língua holandesa e desconhecendo-se os formidáveis tesouros de sua literatura, talvez não seja inútil um resumo comentado de “O reino proibido”.
A obra começa com espécie de diário no qual Camões fala de sua vida na corte portuguesa e de sua paixão por Diana, que foi motivo de seu desterro. Mas admite que a desgraça foi fatal e inevitável; suas atitudes, incompatíveis com as conveniências da sociedade, teriam causado, de qualquer maneira, o exílio.
Depois, em Macau: o governador da cidade, Campos, luta desesperadamente contra seus inimigos, sendo apoiado apenas por um dos oficiais que espera conquistar desse modo, a filha do governador; mas dona Pilar não quer ouvir desse pretendente. Continua o diário de Camões: o exílio, o naufrágio. Numa ilha deserta, perto da costa chinesa, o poeta encontra Pilar, que fugiu das pretensões daquela oficial. Nessa moça, Camões acredita ver uma encarnação ou reencarnação de Diana; motivo que é de importância, na obra. Enfim, o poeta chega a Macau, onde fica preso... Nesta altura interrompe-se bruscamente a narração. Começa o diário de um telegrafista de bordo, dos nossos dias, viajando para a China. Mas foi só um estranho episódio, pois logo continua o romance de Camões, que é escolhido, pelo governador, para acompanhar uma embaixada para Pequim. A caravana perde-se no deserto. Abandonado por todos, o poeta fica só, “junto dum seco, fero e estéril monte” – e essa citação (Canção X, 1), assim como a confusão entre Diana e Pilar, também revelará depois sentido profundo.
De repente, a narração muda novamente de tempo. Aquele telegrafista, desembarcando na China, sente-se em casa. É o fenômeno do “dejà vu” que experimentamos nos sonhos: vendo uma paisagem desconhecida como se já tivéssemos conhecido. Em Macau, o telegrafista assiste a tumultos que lembram a história do século XVI. Retira-se para o deserto. Descansa, “junto dum seco, ferro, e estéril monte” – a identificação de duas pessoas, que já se realizara no caso de Diana e Pilar, repete-se; o homem moderno é Camões. Macau não é a antiga nem a de hoje: é a porta de um reino, fora da civilização europeia, onde o homem é livre e onde, no entanto, tudo é permanente e nada muda através dos séculos. A utopia está realizada. Camões não perdeu inutilmente a vida. Sua luta continua.
Esse livro estranho não deixou de desconsertar a crítica holandesa, que acreditava encontrar na obra a doutrina asiática da reencarnação das almas. Num pequeno escrito, “A última encarnação de Camões”, defendeu-se Slauerhoff contra essa interpretação. Seu objetivo apenas teria sido o de demonstrar a possibilidade de “empatia” intuitiva, de penetrar poeticamente na alma de um grande homem do passado. No fundo, o poeta holandês nega o tempo. Sua China é eterna. E podemos acrescentar: sua China fica em toda parte e em parte nenhuma: na alma de todos os poetas e na sua própria.
Assunto dos mais interessantes seria uma comparação entre a China fantástica de Slauerhoff e aquela outra China fantástica na qual se passam várias novelas e parábolas de Kafka. Mas isto é para outra vez. Agora basta focalizar duas semelhanças: as “Chinas” dos dois escritores contemporâneos são vistas através do sonho e de uma sutil ironia. Realmente, Slauerhoff, homem trágico, nunca deixou de ironizar o mundo e a si próprio. Tinha motivos para isto, e, sobretudo em “O reino proibido”. Pois apresenta-se como novo Camões: mas um Camões sem fé cristã nem fé nacional. Não é preciso dizer que o romance é infinitamente inferior aos “Lusíadas”. Mas não apenas em valor literário. Sobretudo falta ao panorama das aventuras no “reino proibido” o fundo histórico: o império colonial português e o céu cristão.
Mas esse defeito tem, como reversos, uma virtude. Despindo Camões de todos os elementos ideológicos, Slauerhoff descobriu no poeta aquilo que nunca poderia descobrir a historiografia literária oficial dos portugueses nem o romantismo dos estrangeiros: a personalidade de um homem indômito da Renascença. Slauerhoff contribuiu para a melhor compreensão de um aspecto do poeta; e para focalizar a atualidade permanente.  

Artigo originalmente publicado no Correio da Manhã em 8 de outubro de 1955.  

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