VESTDIJK
Otto Maria Carpeaux
Num artigo da revista norte-americana “Atlantic
Montly”, Adrian Veen chamou a literatura holandesa e flamenga (as duas
línguas são idênticas), de “secreta”, porque ninguém a conhece; citou, entre
outros, o nome de Simon Vestdijk, acrescentando: “Se um John Lehmann o tivesse
editado em inglês, o nome desse batavo seria hoje tão famoso como o de Joyce.”
É um exagero. No entanto, vale a pena familiarizar o público brasileiro com
este e alguns outros desconhecidos “dantes desconhecidos”. O desconhecimento da
literatura de um pequeno país, de língua pouco divulgada, não é argumento.
Teimando em ignorá-la, teríamos o direito de lamentar o relativo
desconhecimento da literatura brasileira na Europa?
E o país de Erasmo também é, em nosso
tempo, o país de Huizinga. O país de Rembrandt e Vermeer van Delft também é o
país de Van Gogh. Hoje, todo mundo conhece Mondriaan e o movimento “De Stijl”,
e ao lado dessa grande arte plástica não existiria grande literatura?
Num excelente artigo sobre o poeta
flamengo Van Ostaijen, meu amigo José Roberto Teixeira Leite teve a gentileza
de lembrar de um artigo meu sobre o grande romancista Multatuli, como mais
exemplo de um estudo de literatura holandesa na imprensa brasileira.
Evidentemente, escaparam-lhe os artigos em quais tento chamar a atenção para
alguns escritores modernos: o romancista trágico Van Schendel; o poeta
Slauerhoff, autor de um romance dos mais estranhos, sobre Camões; o iconoclasta
em estilo clássico Marnix Gijsen; o feroz existencialista W. F. Hermans. Quem
mais? Com os poetas há as conhecidas dificuldades de tradução. Mas mereciam
estudo os prosadores flamengos Elsschot e Teirlinck; o escritor proletário
Louis Boon; os interessantíssimos críticos literários Marsman, Ter Braak, Du
Perron; e crítico também é amigo deles, aquele Vestdijk, sobre o qual devo, há
muito, o estudo prometido ao meu amigo Franklin de Oliveira.
Simon Vestdijk (pronúncia: Vesdeik)
nasceu em uma casa na cidade de Harlingen, ninho de pequenos burgueses ferozmente
puritanos. É médico. Ficou calado até a idade de 24 anos. Só então começou a
escrever. E desde então produziu mais de 60 volumes, de todos os gêneros
literários e sobre tudo o que há e não há entre o céu e a terra. Sabe tudo e
sabe fazer tudo. Seu amigo e crítico Ter Braak chamou-o de “duivelskunstenaar”
(artista diabólico). Sua produção é imensa; e continua. É poeta notável, de
cunho fortemente intelectualístico. E grande contista. É grande crítico. Seu
estudo sobre “Rilke como poeta barroco” (1903) é um dos trabalhos mais
importantes, não só sobre Rilke, mas sobre o Barroco literário. Este ensaio
está agora incluído no volume “Lier en lancert” (“Lira e escalpelo”), em que
também se destacam os estudos sobre Emily Dickinson, Joyce, Valéry, George,
Kafka, os sonetos de Nerval. Há mais outros volumes: “De poolsche ruiter”; “Zuiverende
Kroniek”; “O problema da culpa em Dostoiévski”. São análises agudíssimas,
tentativas de “destruir o encanto dos poetas para revelar o encanto da poesia”.
Esse Vestdijk também é eminente crítico de música; agora mesmo anuncia um livro
sobre Mahler. Mas em primeira linha ocupa-nos aqui o romancista.
Atenção: a produção imensa de Vestdijk é
desigual (e o pouco que foi até agora traduzido, especialmente para o alemão, é
inferior ao nível da obra total). É justamente essa desigualdade que informa a
construção do presente artigo. Vestdijk é, sim, um artista de capacidade
diabólica. Mas seria o elogio sem restrições o melhor processo para apresentar
esse desconhecido? Prefiro o caminho contrário: as relativas fraquezas do
autor, francamente admitidas, atestam-lhe o valor.
“Het Vifjde Zegel”, a única obra de
Vestdijk que também os conservadores e os acadêmicos elogiaram, é espécie de
biografia romanceada de El Greco. Com erudição imensa, pintou o romancista um
panorama completo da Espanha antiga: moldura do destino de um grandíssimo
artista que sempre se supera porque sempre duvida de si próprio. É muito
superior ao romance “L’enterrement du Comte d’Orgaz”, de Georges Bordonove , que
agora mesmo está sendo bastante elogiado na França. Uma tradução de “Vijfde
Zegel” (“O quinto sigilo”) seria sucesso internacional. Infelizmente, o êxito
dessa obra levou Vestdijk a escrever mais uma dúzia de outros romances
históricos que se passam em diversas épocas, dos tempos pré-históricos até o
século XIX. A erudição imensa do romancista sempre garante a fidelidade do
quadro. Quase sempre está, de qualquer maneira, “engagé” o coração do autor: “Iersche
Nachten”, por exemplo, sobre a fome na Irlanda de 1847, é um grande romance
social. No entanto: o gênero é falso. A inquietação febril com que Vestdijk
percorre as épocas históricas é aliada da insegurança do próprio autor. Forte
nos estudos filosóficos, o romancista alega como fundamentalmente dessa
(confessada) insegurança e dúvida filosófica quanto ao valor da vida que levou
esse ateu e anti-cristão livremente a escrever romances de tema religioso. Em
“Os últimos dias de Pilatos”, versifica os ressentimentos eróticos e a falência
da mensagem evangélica. Em “O garçom e os vivos”, romance de sabor
dostoievskiano, compara a vida humana a uma viagem de ônibus para o ponto final
desconhecido. São obras de tensão febril que, por isso mesmo, não convencem.
Vestdijk parece-se com seu Greco que, por sua vez, se parece com Cézanne. O
extremo nervo calmo do romancista inspira dúvidas quanto às origens de sua luta
com o mundo e consigo mesmo. Mas também indica a função de sua inteligência: de
escritor: este é seu instrumento para tornar consistentes os conflitos íntimos
que se resolvem em sua literatura, que tem, para o escritor, função catártica.
Daí sua poligrafia errante. Daí a abundância de 60 volumes em pouco mais de 25
anos. Cada uma das suas obras é um aspecto da sua própria “case history”
analítica. Assim como também outros escritores da nossa época, Vestdijk é
fortemente influenciado por Freud. Mas é, entre eles, talvez o único que não se
serve objetivamente da psicanálise: sua literatura é resultado da sua
permanente auto-análise que, como todos os amadores, não acaba nunca. Vestdijk
estava destinado a escrever um “roman fleuve”.
Eis sua obra capital, da qual até agora
estão publicados cinco volumes. O primeiro “São Sebastião”, trata da meninice
de Anton Wachter (que é o alter ego do autor) até os quatro anos de idade. É o
primeiro romance da literatura universal que se ocupa com essa fase da vida. É
originalíssimo, concebido com termos de uma lógica diferente da nossa, porque a
criança aprende palavras ouvidas dos adultos, manejando-as com acepções diferentes
e, às vezes, inventadas, como se fossem fórmulas mágicas. O segundo volume é
“Surrogaten voor Murk Tuinstra”, Ainda nos ocuparão o terceiro, “Terug tot Ina
Damman”, e o quarto, “Menner Vissers Hellevaart”. No ano passado saiu o quinto
volume, “De Baker van de Min”, em que Anton Wachter começa a estudar na
Universidade.
Como dar idéia dessa obra complexa? Superficialmente
vista, é uma série de recordações à maneira de Proust, informada por
mentalidades muito parecida com a de Joyce. Mas Vestdijk não dissolve os
contornos nem a língua. Pode ser lido como se fosse narrador realístico,
observador atentíssimo da vida cotidiana. Apenas a deforma e transfigura. A
rotina que todos os homens conhecem torna-se misteriosa. Depois, esse mistério
é, novamente, o encanto do desconhecido, assim como nas análises do crítico
literário.
Os cinco volumes não foram publicados na
mesma ordem em que foram escritos. Às vezes, parece mesmo como se a obra
inteira já estivesse escrita. Ninguém decifrará jamais os mistérios dessa
cronologia, porque Vestdijk não permite essa invasão de sua intimidade. O
primeiro volume publicado em 1934 é o terceiro da série e, talvez, a melhor
obra de Vestdijk: “Terug tot Ina Damman” (A volta a Ina Damman). Nesse romance
Anton Wachter é um colegial adolescente, precoce e tímido. Já não acredita,
como a criança de 4 anos em “São Sebastião”, na força mágica das palavras. A
palavra é substituída, agora, pelo encanto de uma garota que ele vê todos os
dias, no caminho da escola. Na verdade, essa Ina Damman foi uma pequena braba e
teimosa. Wachter/Vestdijk sabe isso agora, ao recordar-se, ao escrever o
romance. Mas o amor e a timidez subsistem até hoje, e ainda inspiram as últimas
palavras do livro “...ficando frágil, para sempre, aquele que tinha perdido sem
que jamais tivesse sido sua”. É uma obra irresistível. Desde os dias de Guido
Cavalcanti e Dante e do “dolce stil nuovo” são raros, são raríssimos, os que
descobrem uma nova modalidade da poesia erótica. Vestdijk conseguiu. “Terug tot
Ina Damman” deveria ocupar na admiração da nossa época o lugar ilegitimamente
ocupado por “Lolita”.
Hoje, Wachter/Vestdijk conhece melhor os
motivos do encanto permanente de Ina. Embora continuando fiel a ela,
libertou-se pelo mesmo processo analítico de desencanto que é instrumento de
sua crítica literária. E escreveu logo depois, em 1935, “Else Böhler”, a
história de (suas) relações com uma criada alemã, ele já adulto, ela uma Ina
adulta e vulgar. Esse romance ainda poderia ter, como epígrafe, o lema do
“dolce stil nuovo”: “Amor m’inspira...”. Mas é o amor a uma indigna; e, na
segunda parte do romance (estamos em 1935), o falso romantismo em torno de Else
é desmascarado como um dos motivos ressentementais da mais abjecta violência
nazista.
Ina/Else é a mais bem sucedida criaçãode
Vestdijk. A mais complexa é Meneer Visser, em “Meneer Visser’s Hellevaart”: o
pequeno burguês que sonha em tornar-se o Robespierre de Lahringen; e consegue
transformar em inferno fantástico sua cidade: o que na realidade também
sucedeu.
Os romances de Anton Wachter passam-se
na pequena cidade de Lahringen, fantasia transparente da pequena Harlingen em
que Vestdijk nasceu. Que temos nós outros com esses pequenos burgueses
ferozmente puritanos e com esse menino perdido? Mas será que Dublin é mais
interessante e mais universal que Harlingen? Ah, podemos repetir: se um John
Lehmann o tivesse editado em inglês... O ambiente de Vestdijk não é o vasto
mundo da língua inglesa. Mas não é menos digno da nossa atenção, quase eu teria
dito: da nossa reverência. Vestdijk pertence a uma “geração de 38” holandesa,
juntamente com seus amigos: o poeta e crítico Marsman, que, fugindo da invasão
nazista da Holanda, se afogou em 25 de maio de 1940 num mar da Holanda; o
crítico Ter Braak, que, ao saber dessa invasão, deu em 5 de maio de 1940 um
tiro na cabeça; o crítico e romancista Edgar Du Perron, que, ao saber daquela
invasão, sucumbiu no mesmo 5 de maio de 1940 a um colapso cardíaco. Vinte anos
depois, não podemos homenagear melhor a memória desses grandes intelectuais
sacrificados do que homenageando-lhes o amigo.
Texto originalmente publicado no "Correio da Manhã".
Desconfio que esse seja o único artigo importante em português sobre Simon Vestdijk, sobre quem eu tinha uma vaga notícia através de um verbete da Enciclopédia Britânica (que não por acaso tinha sua edição brasileira organizada por Otto Maria Carpeaux).
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